AbdonMarinho - Os Calheiros Marinho e o comércio.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Os Cal­heiros Mar­inho e o comércio.


Os Cal­heiros Mar­inho e o comércio.

Por Abdon C. Marinho*.

O COMÉR­CIO, assim como a agri­cul­tura, sem­pre estiveram entre as ativi­dades da nossa família desde que me entendo por gente – e sei, vem desde bem antes disso.

O tio Pedro, por exem­plo, teve um comér­cio que fez história no mer­cado de Pedreiras desde que foi morar por lá quando veio com a família do Rio Grande do Norte para essas ter­ras.

O tio Deolindo (“tie Dió) tinha seu comér­cio numa casa de alpen­dre numa ele­vação, tín­hamos que vencer alguns degraus na calçada de cimento queimando para chegar à quitanda.

Minha irmã Deiza e seu marido Wil­son (filho de “tie Dió) quando saíram do Cen­tro Novo para Gonçalves Dias mon­taram seu comér­cio na Rua Rui Bar­bosa, logo no iní­cio da mesma, na parte da frente da casa onde moravam. Tem­pos depois, quando fiz­eram a ampli­ação da cidade com a cri­ação do Novo Gonçalves Dia, abri­ram um segundo comér­cio por lá.

Após minha irmã ficar viúva, emb­ora estes dois pon­tos com­er­ci­ais ten­ham fechado, ela con­tin­uou na ativi­dade, primeiro com uma banca de feira, levando seus pro­du­tos de cidade em cidade, até se esta­b­ele­cer onde se encon­tra hoje em um ponto com­er­cial quase em frente a prefeitura onde tra­balha todos os dias, de sol a sol ape­sar de já ter mais de setenta anos.

O meu pai já viúvo, lá pelo final dos anos setenta, mudou-​se para Gonçalves Dias, indo morar numa casa que man­dara fazer fazer ger­mi­nada à casa da minha irmã. Por essa época decidiu colo­car um comér­cio na Rua Dr. Paulo Ramos que é a rua que segue para­lela a Rua Rui Bar­bosa, onde morávamos.

Ainda no fun­da­men­tal, fiquei encar­regado do comér­cio.

Pas­sava o dia no comér­cio – só fechando no horário do almoço e no final dia quando tinha que ir para a escola.

Naquela época os comér­cios, tam­bém chama­dos de qui­tan­das, ven­diam todo tipo coisa: café, açú­car, arroz, fei­jão, óleo, fós­foro, cig­a­rro, cachaça, fumo de rolo, etc., lidava, por isso mesmo, com todo tipo de gente: da dona de casa a “rapariga”, do tra­bal­hador aos cachaceiros.

Naquele tempo, antes do surg­i­mento do Novo Gonçalves Dias ou quando se ini­ci­ava a ocu­pação do mesmo, a Rua Dr. Paulo Ramos ainda era con­hecida como a “rua de trás”, a alguns met­ros adi­ante do “meu” comér­cio tin­ham alguns cabarés onde as “meni­nas de vida fácil” tin­ham difi­cul­dades e suavam para gan­har a vida durante a noite.

A minha viz­inha da esquerda, parede-​meia com a qui­tanda, era uma dessas “moças de vida fácil”, tinha duas fil­has que acabavam brin­cando pelo comér­cio enquanto a mãe des­cansava da labuta.

Quando ela acor­dava tam­bém ia para lá con­ver­sar, pagar alguma coisa que fiz­era fiado ou pedir fiado alguma coisa para pagar com o resul­tado da noite.

Todos sabíamos qual a “guerra” que teria que vencer para pagar o fiado no dia seguinte.

Era comum – e até ansiá­va­mos por isso –, voltar­mos da escola, quando estudá­va­mos à noite, pela “rua de trás” para ver­mos o movi­mento nos cabarés, prin­ci­pal­mente nos dias de maior movi­mento.

Não raro via a viz­inha no “ofí­cio” ten­tando gan­har o din­heiro que me pagaria no dia seguinte.

Encar­á­va­mos isso com nat­u­ral­i­dade. Assim como o fato de com 11 ou 12 anos servir cachaça aos que fre­quen­tavam o comér­cio.

Esse foi o meu ofí­cio dos dez aos qua­torze anos, quando me mudei para fazer o ensino médio na cap­i­tal.

Posso até dizer que come­cei antes, pois quando morava em Gov­er­nador Archer, com minha irmã Bibia, seu marido Hen­rique tinha um quiosque de madeira atrás da Igreja Adven­tista e sob umas sapu­ca­ias e muitas vezes, eu com sete ou oito anos ficava por lá “tomando de conta”.

Pois é, naquele tempo não exis­tia Con­selho Tute­lar.

Logo que teve opor­tu­nidade e con­seguiu jun­tar um din­heir­inho o meu irmão Dodô mon­tou seu comér­cio na mesma Rua Rui Bar­bosa e o man­tém até hoje.

Com o nego Goça, o irmão nascido antes de mim, não foi difer­ente, envere­dou pelo comér­cio desde cedo, com­prando e vendendo de tudo: legumes, ver­duras, carnes, etc. muita das coisas tem que bus­car noutros esta­dos e sai vendendo de feira em feira, de comér­cio em comér­cio pela região do Mearim.

Entre os famil­iares e ami­gos cos­tu­mamos dizer que se o “nego” tivesse estu­dado, com o “tino” que tem, já teria dom­i­nado o mundo.

Nos últi­mos tem­pos tenho ten­tado voltar o comér­cio através de uma das coisas que, jun­ta­mente com o dire­ito, sem­pre me encan­tou: a edu­cação. Daí que resolvi “patroci­nar” junto com ami­gos alguns pro­je­tos no segui­mento.

A véspera do feri­ado da procla­mação da República me alcançou em Timon, terra de muitos ami­gos queri­dos e um calor humano extra­ordinário (o ter­mômetro dizia que está­va­mos com 45º, na som­bra), onde fui apre­sen­tar meus pro­du­tos, vulgo, “vender meu peixe” a esses ami­gos.

Na volta, pas­sando pelo Dezes­sete, Codó, con­videi o com­pan­heiro de viagem para vis­i­tar os meus par­entes em Gov­er­nador Archer e Gonçalves Dias.

Em GA vis­itei a mana Bibia e fui para casa querido irmão Armando, onde fiz o per­noite. No dia seguinte, após a palestra do café desci para o GD.

No cam­inho ia com­par­til­hando com o com­pan­heiro de jor­nada, Ali­son Fer­nando, as lem­branças da minha primeira infân­cia no Cen­tro Novo, que fica divisa entre os dois municí­pios.

Já em Gonçalves Dias pas­sei na casa do Goça, segui até o comér­cio do Dodô onde o cumpri­mentei e fui até o comér­cio da mana mais velha, Deiza.

Já na volta parei para uma con­versa no comér­cio do Dodô.

Um amigo da família, Seu Luiz Ceci, casado com filha Antônio Padre, aparentado dos Peixo­tos, do Cen­tro dos Came­los, já avançado na casa dos oitenta anos, estava por lá e começou a con­tar um pouco dos cau­sos da nossa família desde que vieram do Rio Grande.

Pouco depois chegou o Goça e ficamos os três, além do Ali­son ouvindo alguns cau­sos.

Com o ouvido atento que só os apre­ci­adores de cau­sos, tem fui sol­vendo cada uma das lem­branças dele.

Disse-​nos que o primeiro empreendi­mento com­er­cial do meu pai foi como vende­dor de “mel de furo”, na ver­dade o melaço resul­tante da cen­trifu­gação no processo de pro­dução de açú­car e/​ou cachaça.

Ele, meu pai, ia aos engen­hos – naquela tín­hamos bas­tante no inte­rior do Maran­hão –, com­prava o mel de furo e o reven­dia pela região.

Foi graças a esse comér­cio que com­prou seu primeiro burro começou enveredar por out­ras ativi­dades como a com­pra e venda de arroz.

Já o alcan­cei nessa fase da vida, ele com­prando o arroz “na folha” e nós indo com ele bus­car nas roças dos vende­dores, mon­ta­dos nos bur­ros. Na minha primeira infân­cia, já depois da par­tida de minha mãe, era o nosso lazer: mon­ta­dos nas can­gal­has dos bur­ros íamos pelas veredas bus­car o arroz.

Eram toneladas e toneladas de arroz trans­portadas assim das roças para os nos­sos depósitos.

Meu pai, como já disse out­ras vezes, era anal­fa­beto por parte de pai, mãe e parteira. Já minha mãe fora alfa­bet­i­zada até os primeiros anos do ensino fun­da­men­tal.

Na lida diária, quando não estavam na roça, meu pai estava cuidando de alguma coisa, debul­hando um milho, um fei­jão e minha mãe se ocu­pando na cos­tura numa antiga máquina Singer, aju­dada por minha irmã mais velha que já fazia um “emban­hado” ou pre­gava os botões. Todas as roupas da família eram feitas por elas.

Assim, quando chegava alguém para vender o arroz, meu pai gri­tava: — ô Neuza anota aí que fulano vendeu três ou qua­tro arrobas de arroz.

Segundo o seu Luiz Ceci, meu pai era um com­er­ciante nato e como bom com­er­ciante sabia importân­cia de guardar o din­heiro e as coisas. Achava que gan­hava todo din­heiro que deix­ava de gas­tar.

Dessa parte eu lem­bro bem pois ainda hoje ressoa nos meus ouvi­dos suas palavras: — guarde, meu filho, porque quem guarda tem.

Ele guar­dava bem.

Disse-​nos seu Luiz Ceci que uma vez que uma vez meu pai levou Dadido (meu irmão Adil­son) com ele para fazer umas entre­gas de alguma coisa e com­prar a feira da sem­ana. Na volta Dadido viu alguém vendendo bolo e disse: — ô pai com­pra um bolo para eu ir comendo.

Ao que meu pai respon­deu: — que nada, menino, a tua mãe já está esperando com o almoço pronto.

Outra feita, estava meu pai debul­hando o milho quando chegou alguém: — ô seu Van­delo me dê um copo d’água.

Meu pai levan­tou foi para sala ficava onde ficavam os potes. Pegou um copo de alumínio, enfiou no pote, ouviu-​se só o “tim­bum”. Voltou com o copo e entre­gou ao cidadão.

Após o cidadão beber, olhou para um cacho de bananas pen­durado na sala amadure­cendo para vender na cidade e disse: —ô seu Van­delo, eu não tenho din­heiro para com­prar essa banana, o sen­hor pode me dar uma?

Meu pai arriou-​se sobre a “runa” do milho que debul­hava e gri­tou: — ô Neuza, ô Neuza, venha cá.

Minha mãe largou a cos­tura e cor­reu pra sala: — o que foi Van­delo?

Meu pai respon­deu: — tire uma banana do cacho e dê para o rapaz.

Minha mãe disse: — mas Van­delo você acabou de lev­an­tar para dar a água para o rapaz, por que não deu a banana?

Meu pai respon­deu: — porque a banana eu não tenho cor­agem de dar, dê você.

Se os cau­sos de seu Luiz Cici são ver­dadeiros eu ou meus irmãos não temos como saber, sei ape­nas que quase me acabei de rir deles.

Depois dessa peg­amos a estrada e volta­mos para a cap­i­tal.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado e con­ta­dor de cau­sos.