AbdonMarinho - O assassinato das carpas do imperador e outros delitos.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

O assas­si­nato das carpas do imper­ador e out­ros delitos.


O ASSAS­SI­NATO DAS CARPAS DO IMPER­ADOR E OUT­ROS DELI­TOS.

Por Abdon C. Marinho*.

COMO faço todos os finais de sem­anas e feri­ados, mais cedo me ocu­pei da agradável tarefa de ali­men­tar as carpas que crio no sítio há cerca de seis anos. Ali­men­tar, diz-​se por força de expressão, há todo um rit­ual que começa por chamá-​las para a refeição (da manhã ou da tarde), que elas aten­dem des­barata “car­reira”; depois me sento em uma cadeira ou no chão e começo a jogar a ração de um lado e de outro do laguinho e vou “con­ver­sando” com elas. O “rit­ual” dura quase meia hora, às vezes, até mais.

As carpas são peixes inteligentes, capazes de recon­hecer as pes­soas, quando apare­cem alguém estranho perto do lago elas “fogem” para um canto mais dis­tante do lago, mesmo chamando-​as e sendo horário da “refeição”, relu­tam em apare­cer; são solidárias. Certa vez, uma delas se machu­cou – foi dá um salto mais alto e caiu de mal jeito, enfrentando difi­cul­dades para nadar –, e, enquanto as ali­men­tava, um barulho estranho ou a pre­sença de outra pes­soa, as fez “cor­rer” para o escon­der­ijo, restando ape­nas aquela que se encon­trava machu­cada. Não demorou muito e avis­tei duas delas voltando e se colo­cando lado a lado com a que estava machu­cada servindo de “escolta” e a con­duzindo para onde estavam as out­ras.

Já reg­istrei diver­sos episó­dios que ates­tam a inteligên­cia, sen­si­bil­i­dade e até memória “dos meni­nos”, por exem­plo, além de me recon­hecerem, já recon­hecem e lem­bram dos meus sobrin­hos, emb­ora demorem sem­anas ou meses entre uma visita e outra.

Vez ou outra algum amigo gaiato per­gunta comenta que as min­has carpas já estão no ponto de uma “caldeirada”. Nes­tas opor­tu­nidades per­gunto se não pode ir até o porto da Raposa com­prar uma pescada amarela.

Cuidadas, ali­men­tadas e man­ti­das as condições nor­mais de oxi­ge­nação da água, as carpas podem viver cerca de cem anos – e até mais.

Estava envolto no “rit­ual” quando assaltou-​me a lem­brança do “assas­si­nato” das carpas do Alvo­rada ocor­rido quase que de forma simultânea à “troca de comando” na cap­i­tal da República.

As “carpas do imper­ador” ocu­pavam o espelho d’água do Palá­cio da Alvo­rada há quase quarenta anos – o que prova sua longev­i­dade –, e foi um pre­sente do lendário imper­ador Hiro­hito, que viveu entre 1901 e 1989 – o 124º imper­ador japonês reinou de 1926 até sua morte, em 1989, tendo sido a teste­munha priv­i­le­giada dos prin­ci­pais acon­tec­i­men­tos do século pas­sado –, em recon­hec­i­mento e como votos de boa sorte aquela nova etapa política da vida nacional ini­ci­ada com a eleição da chapa Tan­credo Neves/​José Sar­ney, em 1985.

Guardo com muito apreço os pre­sentes que ganho. Tenho-​os como um “pedaço ima­te­r­ial” daquela pes­soa comigo. Quando os olho ou uso algum deles é uma opor­tu­nidade para lem­brar aque­las pes­soas, aque­las cir­cun­stân­cias em que fui agra­ci­ado. Por exem­plo, há mais de duas décadas o saudoso amigo, jor­nal­ista Wal­ter Rodrigues que deixou esse plano em 2010, presenteou-​me com dois jogos de taças para vinho em cristais. Quando aparece uma cir­cun­stân­cia espe­cial que exija um vinho para comem­o­rar, peço que peguem na cristaleira as “taças de WR” e digo: “— essas taças foram um pre­sente do querido amigo Wal­ter Rodrigues, tomemos este vinho tam­bém em sua hom­e­nagem”. Aproveito, ainda, para con­tar episó­dios da amizade em comum ou das opiniões que tinha sobre alguns assun­tos.

Assim, imag­ino que as carpas que foram doadas pelo então imper­ador do Japão há quase quarenta anos ao Brasil têm sig­nifi­cado histórico. Um pre­sente para durar por sécu­los, com toda sua sim­bolo­gia. Um imper­ador lendário, de uma nação amiga e que já não se encon­tra entre nós, deu-​nos carpas, naquele momento histórico, um sím­bolo da força, per­sistên­cia, bravura e sucesso – tudo pré­cisá­va­mos e pre­cisamos. As carpas trazem ainda uma outra sim­bolo­gia, elas crescem de acordo com o ambi­ente em que vivem. Sig­nif­i­cando que, tam­bém, as pes­soas podem “crescer” con­forme o ambi­ente em que estão inseri­das, não fisi­ca­mente, mas nos planos emo­cional, espir­i­tual e int­elec­tual.

Como cri­ador, imag­ino o tra­balho que foi o trans­porte de quase uma cen­tena de carpas do Japão para o Brasil, tendo que man­ter as condições ideais de oxi­ge­nação da água durante todo o voo.

Chegando aqui tiveram que adaptar-​se as difer­enças de tem­per­atura. Ainda assim, por quase quarenta anos sobre­viveram a tudo, até mesmo as incon­veniên­cias dos tur­is­tas.

Só não resi­s­ti­ram às hor­das de Huno que ocu­param o poder nos últi­mos anos.

Con­trataram uma empresa “espe­cial­izada” que achou opor­tuno esvaziar o espelho d’água e reti­rar toda “biolo­gia” dos peixes, só falta dizer que para man­ter o espelho “limpo” resolveram colo­car água clo­rada no mesmo.

Pior mesmo, só a ilação de que a “moti­vação” para a “limpeza” foi o inter­esse em cole­tar as moedas que os tur­is­tas lançam por lá.

Não entendi que tipo de limpeza fazia-​se necessária no espelho d’água. Aqui, a única coisa que faze­mos é man­ter uma camada de cas­calho de rio no fundo do lago, um sis­tema de fil­tragem com fil­tros e com aguapés e a reti­rada da fol­has que caem diari­a­mente. Vez ou outra, quando não chove, colo­camos um pouco de água do poço para repor as per­das pela evap­o­ração ou de algum vaza­mento, e só.

A falta de zelo pelas carpas do imper­ador Hiro­hito e toda sua sig­nifi­cação ape­nas rev­e­lam a ignorân­cia das autori­dades brasileiras. Não con­hecem o ele­men­tar de história; não sabem o que sig­nifica uma troca de pre­sentes; não têm nen­hum respeito pelos ani­mais ou pela flora.

Decerto pen­saram que o pre­sente do imper­ador: “eram ape­nas peixes”.

A mesma falta de zelo que resul­tou na morte de diver­sas emas que habitam o mesmo palá­cio e que têm como função precípua a manutenção do equi­líbrio ecológico, com a redução do número de inse­tos que infes­tam o ambi­ente. Os “hunos” não zelam nem pelos ani­mais que zelam por eles.

Os maus-​tratos aos ani­mais, para a des­graça dos humanos, não ceifam ape­nas as carpas do imper­ador do Japão, as emas que equi­li­bram o ambi­ente nas residên­cias ofi­ci­ais, pelo con­trário se espal­ham por todo o país. São as queimadas sem con­t­role, o des­mata­mento sem trégua, a con­t­a­m­i­nação dos rios, o lixo jogado nos oceanos …

Aqui mesmo, na ilha do Maran­hão, uma cena me entris­tece diari­a­mente, pelo menos duas vezes ao dia.

Nas três rodovias que pego para chegar ao tra­balho todos os dias, me deparo com uma “pro­cis­são” de ani­mais vagando sem rumo, sem donos e sem cuida­dos, pas­sando fome, sede e sendo mal­trata­dos. São jumen­tos de várias idades, são bur­ros, cav­a­los, são cães, são gatos. Muitos com as patas machu­cadas, que­bradas, com diver­sas esco­ri­ações ou doentes mesmo. É um sofri­mento sem fim.

As autori­dades estad­u­ais e dos municí­pios “fingem-​se” de cegos ou que não pos­suem qual­quer respon­s­abil­i­dade com o assunto.

O Min­istério Público Estad­ual, que cer­ta­mente pos­sui algum setor espe­cial­izado para o tema, parece não se inco­modar com o sofri­mento dos ani­mais; out­ras enti­dades da sociedade civil, a OAB, inclu­sive, dão o silên­cio como respostas.

Um silên­cio ensur­de­ce­dor a con­trastar com a dor e o sofri­mento das cen­te­nas de ani­mais que vagam sem des­tino.

Ninguém se move para fazer algo, ninguém se move para cobrar que façam.

Até quando?

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.