AbdonMarinho - A tragédia é irmã da omissão e prima da incompetência.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

A tragé­dia é irmã da omis­são e prima da incompetência.

Vista de Recife — PE. Foto de Abdon C. Marinho.

A TRAGÉ­DIA É IRMÃ DA OMIS­SÃO E PRIMA DA INCOM­PETÊN­CIA.

Por Abdon C. Marinho*.

UMA SEM­ANA, enquanto o brilho do Car­naval con­ta­giava o país após dois anos sem tal festa dev­ido à pan­demia, uma tragé­dia ocor­ria no litoral norte de São Paulo e que, até aqui, já con­tabi­liza quase seis dezenas de vidas humanas per­di­das.

Um “evento climático extremo” – chu­vas tor­ren­ci­ais –, provo­cou desliza­men­tos de encostas, levando con­sigo dezenas, cen­te­nas de habitações, soter­rando out­ras tan­tas e cul­mi­nando com o número de mor­tos referi­dos acima que ainda não é defin­i­tivo tendo em vista que diver­sas pes­soas ainda estão desa­pare­ci­das.

Como não sou um grande folião, desde o domingo de Car­naval até a quarta-​feira de Cin­zas alternei a pro­gra­mação de leituras, filmes, escritas e música com o acom­pan­hamento dos noti­ciários sobre a tragé­dia.

Dispondo do tempo, enquanto ia acom­pan­hando as notí­cias, me ocu­pava em refle­tir sobre o que a motivou.

Quase todos os anos assis­ti­mos os tais “even­tos climáti­cos extremos” – e os cien­tis­tas já vêm aler­tando, e não é de agora, que eles serão cada vez mais fre­quentes e inten­sos –, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, já reg­is­traram situ­ações climáti­cas “anor­mais” nos últi­mos anos – me referindo ape­nas aos que lem­bro de ime­di­ato.

Há décadas, desde que sur­gi­ram os ter­mos “El Niño” e “La Niña”, que con­vive­mos com secas extremas no nordeste, chu­vas inten­sas no sul e sud­este; se inver­tendo tais cenários de forma alter­nada, numa região ou noutra.

Na con­fer­ên­cia inter­na­cional sobre o clima ocor­rida no Brasil há mais de trinta anos, a Rio 92, já se falava quero clima seria cada vez mais deter­mi­nante para a vida dos humanos no plan­eta e que pre­cis­aríamos ado­tar inúmeras medi­das para mino­rar os efeitos dos even­tos.

O que foi feito? Nada. Ou quase nada sig­ni­fica­tivo.

Como con­se­quên­cia, o “clima” escolhe ano sim e no outro tam­bém, algum estado brasileiro para ser “cas­ti­gado” com alguma tragé­dia. Em qual­quer um deles encon­trará as condições propí­cias para cei­far vidas e causar imen­sos pre­juí­zos.

Desde sem­pre sabe­mos que não podemos con­tro­lar o clima, é algo que encontra-​se a cima de nos­sas forças, sabe­mos, sim como mino­rar os efeitos que o mesmo provoca do plan­eta, daí se falar tanto na diminuição do des­mata­mento, na diminuição da poluição, na redução da pro­dução de gases que provo­cam o aque­c­i­mento global, etc., etc., tanto assim, que desde a Rio 92 que as nações assi­nam pro­to­co­los de intenções – que depois igno­ram –, com medi­das a serem ado­tadas por cada um deles visando man­ter o equi­líbrio climático.

Desde sem­pre tam­bém sabe­mos que é pos­sível, se não elim­i­nar, mit­i­gar ou reduzir os efeitos e a perda de vidas humanas nas tragé­dias quase anun­ci­adas de todos os anos.

Essa mit­i­gação, redução ou mesmo elim­i­nação da perda de vidas humanas nas tragé­dias cau­sadas pelos even­tos climáti­cos se dá com a ação de esta­dos e municí­pios na imple­men­tação de políti­cas públi­cas que garan­tam mora­dias pop­u­lares em lugares seguros e impeça a ocu­pação de áreas de risco.

Todos os anos, diante das tragé­dias, apare­cem os cien­tis­tas, espe­cial­is­tas ou mesmo autori­dades dizendo que as con­struções que lev­adas pelas enchentes, que deslizaram ou foram soter­radas, estavam em locais inde­v­i­dos; que pre­cisamos fazer isso ou aquilo para impedir que isso volte acontecer.

Depois que o noti­ciário “esfria”, parece que ninguém mais lem­bra do que acon­te­ceu, os inves­ti­men­tos não vêm, as pes­soas con­tin­uam ocu­pando de qual­quer jeito áreas inse­guras e as autori­dades de omitindo, como sem­pre.

Diante dos holo­fotes, o din­heiro existe, as medi­das restri­ti­vas serão tomadas “doa a quem doer”, não serão omis­sos, incom­pe­tentes e haverá proa­t­ivi­dade, fora dos holo­fotes, tudo con­tin­uará como dantes até a próx­ima tragé­dia no verão seguinte.

Como dito no título, as tragé­dias no Brasil são irmãs das omis­sões das autori­dades fed­erais, estad­u­ais e munic­i­pais, que emb­ora sabendo que ela virá mais cedo ou mais tarde, nada fazem.

Agora mesmo, enquanto somos “inun­da­dos” pelo noti­ciário sobre a tragé­dia no litoral norte de São Paulo quan­tas ocu­pações irreg­u­lares estão acon­te­cendo em todo país? Mil­hares.

Aqui mesmo na Ilha do Maran­hão, nas rodovias que a cor­tam e pelas quais passo todos os dias, vejo sur­gir diver­sas invasões ou ocu­pações irreg­u­lares de ter­ras.

Há anos venho aler­tando para o retorno, na Ilha, da chamada “indús­tria das invasões”, sem que as autori­dades se man­i­festem para impedi-​las. Mesmo pes­soas que pos­suem imóveis, estão fin­gindo que não tem onde morar para con­struir em pro­priedades alheias ou pri­vadas.

Muito emb­ora as ocu­pações irreg­u­lares (invasões) rep­re­sen­tem gas­tos públi­cos pos­te­ri­ores para urban­iza­ção, implan­tação de serviços e equipa­men­tos públi­cos diver­sos, as autori­dades per­mitem que os lití­gios judi­ci­ais sejam trata­dos como questões pri­vadas ou seja, se o pro­pri­etário pelos próprios meios ou através da justiça não con­segue “desin­vadir” o imóvel, estare­mos diante do surg­i­mento de um “novo bairro”, que cer­ta­mente levará o nome de um político famoso, “bati­zado” na esper­ança de que não serão per­tur­ba­dos.

(Invasão em anda­mento em Paço do Lumiar — MA. Foto de Abdon C. Mar­inho).
Con­sol­i­dada a ocu­pação e surgido o “bairro” lá vem municí­pio e estado para dotá-​lo de infraestru­tura e até reg­u­larizar as posses no mesmo momento em que os “inva­sores orig­inários” ini­ciam a venda dos ter­renos, sobre­tudo os mais val­oriza­dos, às mar­gens de rodovias ou vias prin­ci­pais.

É assim que fun­ciona há mais 50 anos a “indús­tria da invasão” que as autori­dades fin­gem não ter qual­quer con­hec­i­mento.

Com toda tec­nolo­gia envolvida na vida das pes­soas atual­mente, autori­dades estad­u­ais e munic­i­pais – e mesmo fed­erais –, não con­seguem ter um cadas­tro das famílias ou pes­soas que efe­ti­va­mente não têm onde morar – muito emb­ora todos este­jam inscritos nos pro­gra­mas tipo “Bolsa Família” ou Auxílio Emer­gen­cial.

Essa falta de con­t­role, de com­par­til­hamento de infor­mações sobre a real­i­dade econômica das famílias é a “prima incom­petên­cia” fazendo o seu “tra­balho” no favorec­i­mento das tragé­dias, da des­or­dem urbana, da vio­lên­cia e do caos.

Foge à minha com­preen­são que as autori­dades das três esferas de gov­erno (fed­eral, estad­u­ais e munic­i­pais) não con­sigam fazer um mapea­mento das áreas de risco, das pes­soas e famílias que efe­ti­va­mente moram em tais situ­ações por neces­si­dade e não con­sigam resolver ou pelo menos mino­rar a situ­ação das mes­mas antes das chu­vas e das tragé­dias do próx­imo verão.

A tragé­dia não vem soz­inha, ela tem uma irmã chamada omis­são e tem uma prima chamada incom­petên­cia. Enquanto o Brasil não apren­der a respon­s­abi­lizar os que “têm culpa no cartório”, seja por ação, seja por omis­são, seja por incom­petên­cia, deve­mos nos con­for­mar e nos preparar para chorar os mor­tos a cada tragé­dia – ou ser­mos indifer­entes e “sam­bar” diante da dor cau­sada pelas mes­mas.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.