AbdonMarinho - O Brasil está doente.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

O Brasil está doente.


O BRASIL ESTÁ DOENTE.

Por Abdon Marinho.

DECERTO que o texto que orig­i­nal­mente plane­jei para este Domingo de Ramos não era o que escreverei nesta manhã.

Pre­tendia falar de política mas noutro sen­tido, nas renún­cias de políti­cos para dis­putar out­ros car­gos, na sucessão no estado com o vice-​governador sendo alçado à tit­u­lar e can­didato à reeleição e as “mex­i­das” políti­cas que estão ocor­rendo com pactos inque­bráveis sendo rompi­dos, amizades des­feitas, foguetes dando ré e até mesmo alguns bois “avoando” na Praça João Lis­boa.

Dou um tempo em tais pau­tas para tratar de uma outra que me parece bem mais urgente: o nosso país está doente.

Quando falo em doença não me refiro ape­nas aque­las que se mate­ri­al­izam de forma “física”, o empo­brec­i­mento das famílias; a cares­tia; a fome; o desem­prego; a destru­ição do meio ambi­ente; a edu­cação e a saúde sucateadas; a ciên­cia e tec­nolo­gia inex­is­tistes; a infraestru­tura precária; e tan­tos out­ros males que nos afligem.

A ver­dadeira doença que desejo tratar – e que me parece muito mais grave –, é essa doença da “alma” que de uns tem­pos para cá pas­sou a acome­ter o país e o seu povo; essa falta de empa­tia pelo sofri­mento alheio; essa falta de respeito por aque­les que pen­sam difer­ente; esse ódio desme­dido; e até mesmo essa falta de humanidade.

Um exem­plo claro do falo (den­tre tan­tos) e que me mobi­li­zou para escr­ever o texto, foi a fala de um dep­utado fed­eral, filho de impor­tante político brasileiro – por motivos san­itários me abstenho de citar nomes –, na qual disse que sen­tira “pena” da cobra que fora uti­lizada na tor­tura da jor­nal­ista Miriam Leitão, ocor­rida nos anos de chumbo da ditadura mil­i­tar brasileira.

Como, diante da tor­tura, algum ser humano poder referir-​se à vítima de forma tão cruel? Dizer que sen­tir “pena” não vítima, mas do instru­mento de tor­tura? Qual é a clas­si­fi­cação que ocupa tal colo­cação na gale­ria das infâmias?

É que sinto pena dos ani­mais que são uti­liza­dos como sucedâ­neos das covar­dias humanas. Assim, por motivos diver­sos, con­cordo com dep­utado: ani­mais não dev­e­riam ser uti­liza­dos como armas ou instru­men­tos de tor­turas pois mesmo os mais bru­tos são inca­pazes, como os humanos, de faz­erem tanto mal à sua espé­cie.

Diante da reper­cussão neg­a­tiva à infâmia per­pe­trada, ao crime cometido, à falta de decoro patente, o dep­utado não deu-​se por achado, pediu o VAR – sigla em inglês para Video Assis­tant Ref­eree.

Na Copa do Mundo de 2018, a FIFA começou a uti­lizar o sis­tema eletrônico de auxílio aos árbi­tros a fim de com­pro­var, medi­ante o exame de ima­gens, que o lance efe­ti­va­mente ocor­reu como foi arbi­trado.

Pois é, por mais ina­cred­itável possa pare­cer, a excelên­cia teve o dis­parate de duvi­dar da existên­cia de tor­tura à jor­nal­ista, pedindo como prova idônea, den­tre out­ras, vídeos da tor­tura per­pe­trada pelos agentes do estado con­tra a mesma há cerca de 50 anos.

A primeira coisa que pen­sei ao tomar con­hec­i­mento dos ques­tion­a­men­tos da excelên­cia sobre inex­istên­cia de vídeos, relatórios cir­cun­stan­ci­a­dos, em três vias, assi­na­dos e carim­ba­dos pelos tor­tu­radores, foi: que tipo de droga alu­cinó­gena essa gente toma no café da manhã?

Emb­ora mais comum do que se imag­ina, a tor­tura é o crime mais odi­ento que se pode come­ter – acred­ito que seja até pior que a morte –, deixando mar­cas físi­cas e/​ou psi­cológ­i­cas nas suas víti­mas pelo resto de suas vidas.

De tão odi­ento, tal crime é objeto de mais de uma dezenas de trata­dos inter­na­cionais visando sua errad­i­cação e punição daque­les que a prati­cam. Mesmo nos dias de hoje, nas guer­ras em curso, um dos tra­bal­hos dos com­bat­entes, além de der­ro­tar os inimi­gos, é ocul­tar os crimes de guerra cometi­dos, notada­mente a tor­tura.

O dep­utado, que quase virou embaix­ador do Brasil nos EUA, por pos­suir como cre­den­ci­ais o fato de saber fritar ham­búr­guer, que foi ou é mem­bro da Comis­são de Relações Exte­ri­ores da Câmara dos Dep­uta­dos e que, imagina-​se, seja alfa­bet­i­zado, dev­e­ria ou teria o dever de saber que o crime de tor­tura por sua repulsa uni­ver­sal, exceto por alguns tor­tu­radores sádi­cos e/​ou per­ver­tidos não deixa ras­tros ou não fácies de serem com­pro­va­dos com provas doc­u­men­tais. Exis­tem, inclu­sive, trata­dos dos quais o Brasil é sig­natário, cred­i­tando à palavra da vítima como prova.

Se o dep­utado é capaz de calçar-​se soz­inho e já não usa mais fral­das, dev­e­ria saber que se o tor­tu­rador não instalou câmeras nas câmaras de tor­turas para depois saciar seus instin­tos doen­tios, as víti­mas menos ainda – impos­sível, até –, teria como doc­u­men­tar para depois com­pro­var a vio­lên­cia que sofr­era.

Talvez, por algum dis­túr­bio que não con­sigo imag­i­nar qual seja, a excelên­cia tenha imag­i­nado que uma vítima antes do iní­cio de uma sessão de hor­ror, pudesse pedir licença ao tor­tu­rador para insta­lar uma câmera de fil­magem e doc­u­men­tar o ato. Pelo menos “selfie”, né, dep­utado?

Isso se não con­seguir perce­ber que os atos de tor­turas acon­te­ce­ram há cerca de cinquenta anos, repito.

Quando digo que o Brasil é um país doente não é por exi­s­tir entre “os rep­re­sen­tantes do povo” energú­menos desta natureza ou quilate é, prin­ci­pal­mente, porque tais asnices encon­tram respaldo em uma parcela sig­ni­fica­tiva da sociedade.

Mesmo diante de algo tão abjeto como a tor­tura, encon­trei diver­sas pes­soas, muitas delas, inclu­sive, com mais de dois neurônios ativos, defend­endo a posição do dep­utado, con­cor­dando com ele e exigindo que a jor­nal­ista apre­sen­tasse os “vídeos” ou out­ros doc­u­men­tos ofi­ci­ais capazes de com­pro­var a tor­tura que sofrera.

Que tipo de gente é capaz disso?

Fiz­eram pior, cansa­dos de ques­tionar ou diante do ridículo de ques­tionar uma vítima de tor­tura com argu­men­tos tão bizarros, pas­saram a desqual­i­ficar a vítima de tor­tura, em com­ple­mento ao que já fiz­era o dep­utado.

Estes “humanos” uti­lizam de tex­tos, “memes” e até vídeos, rela­tando fatos e ou cir­cun­stân­cias profis­sion­ais ou de críti­cas a vitima que a atinge de forma lat­eral para desqual­i­fi­cação da mesma.

Na esteira do falo, vi, por estes dias, um vídeo, que acred­ito ser dos anos 80 ou 90, com críti­cas de um pro­fes­sor à jor­nal­ista. Tudo no script da desqual­i­fi­cação lat­eral como forma de apoio ao com­por­ta­mento repug­nante do dep­utado.

Quem faz isso? São os “cidadãos de bem”, pais de família, advo­ga­dos, juízes, evangéli­cos, todos cidadãos que se dizem amantes e tementes a Deus, mas que não acham nada demais repro­duzirem, repostarem, dis­sem­inarem, ainda que de forma lat­eral, ataques a uma sen­hora de quase setenta anos que foi vítima de tor­tura.

Na guerra política que não tem um dia, um min­uto de trégua, há mais qua­tro anos, “cidadãos de bem” não enx­ergam qual­quer mal em atacar, por ação ou omis­são uma sen­hora de setenta anos ou de noventa anos, como fiz­eram há poucos dias com Fer­nanda Mon­tene­gro depois que ela fez críti­cas ao atual gov­erno.

Que espé­cie de sen­ti­mento move uma mul­ti­dão, ainda que vir­tual, para atacar uma sen­hora de mais noventa anos e com vasta folha de serviços presta­dos ao país nos mais setenta anos como atriz senão alguma psicopatia?

É como vejo o que fazem com a jor­nal­ista Miriam Leitão, como fiz­eram ou fazem com a atriz Fer­nanda Montenegro.

Vejam que mesmo uma guerra odi­enta como esta de Putin con­tra a Ucrâ­nia encon­tra no doente Brasil uma mul­ti­dão de defen­sores para justificá-​la – neste caso, de diver­sas cor­rentes políti­cas –, ao argu­mento de que se trata de uma “guerra defen­siva”, de que a Ucrâ­nia estaria ameaçando os rus­sos com a pro­dução de armas de destru­ição em massa ou até mesmo que seria uma batalha con­tra uma tal Nova Ordem Mundial — NOM, diver­sos tipos de maluquices a ali­men­tar mentes doen­tias com teo­rias con­spir­atórias.

O pior de tudo isso é que o país não demon­stra capaci­dade recuperar-​se tão cedo.

Que o bom Deus tenha piedade de nós.

Abdon Mar­inho é advo­gado.