AbdonMarinho - CALA BOCA JÁ MORREU! OU NÃO
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

CALA BOCA MOR­REU! OU NÃO


CALA BOCA MOR­REU! OU NÃO.

Por Abdon Mar­inho.

ARTIS­TAS sobem ao palco de impor­tante fes­ti­val de música e, ova­ciona­dos, fazem pros­elit­ismo político a favor de seu can­didato – e con­tra outro. O par­tido do político que sentiu-​se ofen­dido vai à Justiça Eleitoral recla­mar de cam­panha política ante­ci­pada.

Provo­cada, a Justiça Eleitoral, por um dos seus min­istros plan­ton­istas, deter­mina que sejam ces­sa­dos os pros­elit­ismos políti­cos, sob pena de pesadas mul­tas aos orga­ni­zadores do fes­ti­val.

A decisão do min­istro parece que teve efeito con­trário e acir­rou ainda mais os âni­mos com diver­sos artis­tas reiterando na prática, diver­sos out­ros indo ao maior palco do mundo, as redes soci­ais, protestarem con­tra o que enten­deram como cen­sura à livre man­i­fes­tação do pen­sa­mento e out­ros, ainda mais desafi­adores – e ricos –, se ofer­e­cendo para pagarem as mul­tas impostas pela Justiça.

Diante da vasta reper­cussão neg­a­tiva, o par­tido autor da ação desis­tiu e o min­istro arquivou o caso.

Falando ao seu público, mas sem dec­li­nar nomes, o pres­i­dente da República “man­dou” que min­istros do Supremo Tri­bunal Fed­eral – STF, calassem a boca.

A sem­ana que pas­sou reg­istrou, ainda, um breve con­flito entre a Câmara dos Dep­uta­dos e o STF por conta da deter­mi­nação de um min­istro para que um dep­utado fed­eral pas­sasse a usar tornozeleira eletrônica, suposta­mente por infringir medi­das restri­ti­vas ante­ri­or­mente impostas pela suposta prática de crime que ele (dep­utado) alega ter sido ape­nas “livre man­i­fes­tação do pensamento”.

Após desaforos de lado a lado, empurra-​empurra, uma ten­ta­tiva frustrada de deter­mi­nar que a Polí­cia Fed­eral fosse à Câmara dos Dep­uta­dos fazer cumprir a deter­mi­nação e à presidên­cia da Casa protes­tar, o min­istro impôs pesada multa ao par­la­men­tar e blo­queio de ativos até que a decisão fosse cumprida.

O dep­utado cedeu e pas­sou a usar a tornozeleira.

Antes do iní­cio do fim da sem­ana, com ape­nas dois votos con­trários, o plenário só STF, con­fir­mou as medi­das restri­ti­vas impostas pelo min­istro.

O STF, aten­dendo a cobranças diver­sas, já mar­cou o jul­ga­mento para enfrentar a questão de fundo envol­vendo o par­la­men­tar para o dia 20 de abril, numa infe­liz coin­cidên­cia, data do aniver­sário de Hitler, o exem­plo mais clás­sico de que se é pos­sível destruir a democ­ra­cia e a liber­dade uti­lizando os próprios instru­men­tos da democ­ra­cia e da liber­dade.

No jul­ga­mento, o Supremo terá que enfrentar questões como, a liber­dade de expressão, a invi­o­la­bil­i­dade das imu­nidades par­la­mentares, entre out­ras questões conexas a elas.

Cer­ta­mente a decisão não será do agrado de todos, até porque, do lado de fora daquela corte, a decisão já se encon­tra tomada, con­forme a con­veniên­cia política de cada um, por juris­tas, políti­cos e pela “mil­itân­cia” de todos os lados.

Já trata­mos deste assunto ante­ri­or­mente e voltare­mos a ele lá na frente, talvez por ocasião da decisão da Corte.

Por hoje tratare­mos das questões genéti­cas envol­vendo o tema.

O Brasil, não é de hoje, vem pas­sando por um processo agudo de intol­erân­cia às opiniões con­trárias.

Não falo ape­nas do mau hábito das autori­dades, quais­quer que sejam elas, em relação às críti­cas ofer­tadas pelos admin­istra­dos à sua gestão, mas, tam­bém, dos próprios cidadãos em relação as opiniões dos out­ros.

Hoje já não podemos agir com a sim­ples pureza de uma cri­ança e dizer que “o rei está nu” quando assim estiver, sem atrair para si o ódio e a intol­erân­cia do próprio rei, seus cupin­chas e, até mesmo, dos seus par­tidários.

Assim assis­ti­mos gov­er­nantes fes­te­jarem os próprios fra­cas­sos como se estivésse­mos diante de grandes feitos.

Certa vez atrai a ira de alguns por ter crit­i­cado um gov­erno que pas­sava em revista carros-​pipas como um grande feito para a solução para o prob­lema da falta d’água na cap­i­tal do estado.

Fiz uma per­gunta óbvia.

Indaguei se não have­ria mais méri­tos se os gov­er­nos, ao invés de carros-​pipas, tivesse disponi­bi­lizado água tratada e com fre­quên­cia para a pop­u­lação.

Ao fes­te­jarem os carros-​pipas não estariam cel­e­brando a própria inop­erân­cia do gov­erno que não proveu a água para os lares na forma cor­reta, em suas torneiras?

Outra vez, já em outro gov­erno e de oposição ao ante­rior, a ira, tam­bém, se deu por criticar aquilo que fes­te­jam como méri­tos mais que entendo serem ates­ta­dos de fra­cas­sos.

No caso, o gov­erno cel­e­brava o fato de ter aumen­tado em X vezes o número de restau­rantes pop­u­lares, onde a pop­u­lação menos favore­cida pode alimentar-​se, e com qual­i­dade, por um valor módico, acho que um real.

A inda­gação que fiz foi se não seria bem mel­hor ter desen­volvido a econo­mia para que a pop­u­lação pudesse com­prar sua própria comida ao invés de, tangida pela neces­si­dade, pre­cisar ser socor­rida pelo Estado nos restau­rantes populares?

Em ambos os casos, em gov­er­nos dis­tin­tos, as críti­cas não se diri­gi­ram às medi­das em si. Todos sabe­mos que prover água para a pop­u­lação, assim como disponi­bi­lizar ali­men­tos a um povo empo­bre­cido é fun­da­men­tal, necessário e até um ato de gen­erosi­dade, as críti­cas foram, são e serão, pelo fato daque­les gov­er­nos fes­te­jarem como “feitos” algo que, na ver­dade, são fra­cas­sos gov­er­na­men­tais.

Algum dia, talvez esmi­uce­mos estas visões dis­tor­ci­das dos gov­er­nos e gov­er­nantes e porque dev­eríamos combatê-​las, o texto de hoje, entre­tanto, é para ressaltar que mesmo críti­cas, que na ver­dade são con­statações óbvias, de uns tem­pos para cá, ferem suscetibil­i­dades, o cidadão comum, não enga­jado, deve privar-​se de fazê-​las sob o risco de ser colo­cado no “índex dos inimi­gos públi­cos” e sofrer toda sorte de perseguição.

Observe que a Con­sti­tu­ição da República coloca como um dos primeiros dire­itos e deveres indi­vid­u­ais a livre man­i­fes­tação do pen­sa­mento: “é livre a man­i­fes­tação do pen­sa­mento, sendo vedado o anon­i­mato”, art. 5º, IV.

Esse dire­ito, con­forme se ver­i­fica nos incisos seguintes, emb­ora per­mitindo a livre man­i­fes­tação do pen­sa­mento, não isenta o “man­i­fes­tante” de respon­s­abil­i­dades, tanto assim que garante aos “ofen­di­dos” a reparação por dano moral, mate­r­ial ou à imagem, além do dire­ito de resposta pro­por­cional ao agravo.

Essa, tam­bém, uma das razões para, no livre exer­cí­cio da man­i­fes­tação do pen­sa­mento, ser vedado o anon­i­mato.

Observo que pas­sa­dos mais de três décadas da pro­mul­gação da con­sti­tu­ição fed­eral, o Brasil ainda “patina” na inter­pre­tação de uma das suas prin­ci­pais con­quis­tas – e os fatos aí estão para com­pro­var –, que é a livre man­i­fes­tação do pensamento.

Tal situ­ação, ali­ada à inter­pre­tação “con­forme o inter­esse”, con­ges­tiona o Poder Judi­ciário com infini­tas deman­das do tipo, ou, pior, sub­mete o país a uma espé­cie de cen­sura judi­ciária per­ma­nente, visando ocul­tar dos olhos do público os desvios ou mesmo servindo para inflar os egos dos pequenos dita­dores.

Chovem os exem­p­los de autori­dades que pare­cem só pos­suírem duas ocu­pações na vida: aliviar as “bur­ras das viú­vas” e ofer­e­cerem deman­das con­tra aque­les que os denun­ciam.

Os pequenos dita­dores – pequenos não no tamanho mas na estatura moral –, não se cansam demon­strarem o desapreço pelo debate de ideias ou em aceitarem críti­cas. Agem como se nunca errassem ou como se estivessem imunes às críti­cas por seus erros.

Situ­ação pior só mesmo aquela em que os que avil­tam a lei são os que dev­e­riam e teriam o dever fun­cional de a defender.

A inse­gu­rança jurídica numa questão tão fun­da­men­tal frag­iliza o exer­cí­cio da cidada­nia plena e, por con­se­quên­cia, a própria democ­ra­cia.

Isso sem falar naque­les cidadãos que, covardes de nascença, pref­erem o cômodo silên­cio em nome da não perseguição ou de rece­ber as migal­has que caem das mesas dos poderosos.

São, prin­ci­pal­mente, estes atos de auto­cen­sura que tor­nam mais dis­tante o sonho de uma nação livre, igual­itária, proba, respeita­dora da cidada­nia e onde os cidadãos pos­sam dizer sem qual­quer receio: “cala boca já mor­reu, quem manda na minha boca sou eu”.

Por enquanto ainda esta­mos naquela: “cala boca já mor­reu ou não”.

Abdon Mar­inho é advo­gado.