O PAÍS DO PUXADINHO CONTA E CHORA SEUS MORTOS.
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- Criado: Quarta, 13 Fevereiro 2019 12:25
- Escrito por Abdon Marinho
O PAÍS DO PUXADINHO CONTA E CHORA SEUS MORTOS.
Por Abdon Marinho.
NADA talvez seja mais representativo do país do que aquele “puxadinho” no Centro de Treinamento do Flamengo, onde se hospedavam, e morreram dez adolescentes num incêndio ocorrido nos últimos dias.
Aqui não se procura – não agora –, imputar responsabilidades a quem quer que seja. Este é o papel das autoridades que, diante da tragédia ocorrida, devem, finalmente, abrir os olhos e apurar as circunstâncias e as responsabilidades pelo perecimento de tantos jovens em tão tenra idade.
Apenas registro: aquele puxadinho ali era o Brasil, era o retrato de um país que não liga – ou onde ninguém liga –, para as responsabilidades.
O puxadinho estava ali, à vista de todos e, segundo todos, em condições adequadas para hospedar os jovens, ninguém viu nada demais ou de errado. Entretanto, após o ocorrido o que mais aparece são especialistas para dizer que aquele tipo de construção não era adequada.
Se nada tivesse acontecido, ainda hoje estaria lá abrigando os jovens. Assim como devem existir milhares de outros Brasil afora.
Dias antes do incêndio no CT do clube foi o rompimento da barragem de Brumadinho, MG, que ceifou a vida de mais de trezentas pessoas.
Depois do acontecido revelou-se ao país que o acidente era anunciado desde sempre, que o tipo de construção de barragens adotado era o mais barato e, também por isso, o mais perigoso.
Ainda assim, uma das maiores empresas do mundo – seguramente a segunda maior mineradora do mundo –, adota esse tipo de construção em Minas Gerais e em diversos outros lugares do país.
Nem mesmo a tragédia de Mariana, ocorrida três anos antes, motivou a mineradora a mudar as práticas, tudo continuou como antes: nada fez. Ou fez bem pior: manteve um restaurante e o seu setor administrativo abaixo da barragem, no caminho do “mar de lama”.
Já caminhando para o franco desafio à legislação penal, foram além, nos dias anteriores à tragédia humana e ambiental tomaram conhecimento do risco iminente e ainda assim nada fizeram para impedir ou minorar os efeitos da tragédia, pelo contrário, segundo depoimento, “foçaram a barra” para obterem um certificado de estabilidade da barragem.
Embora tudo apontando em sentido distinto, custo acreditar que tivessem a intenção “deliberada” de matar seus empregados, assim como as demais vítimas. Então, por que nada fizeram? Por que não avisaram a ninguém dos riscos? Simples, porque falta profissionalismo; porque acreditam que nada acontecerá.
Por isso assumiram o risco de causar a tragédia que provocaram.
E não é de agora, não é de hoje. Há vinte anos que as estruturas estavam ali, na posição de risco com todos fingindo que estava tudo bem. Sabiam que mais cedo ou mais tarde – e sabiam ser cedo –, a barragem ruiria. Ainda assim, pagaram para ver. Ou, simplesmente, como é tão comum, deixaram “nas mãos de Deus”.
Mesmo depois de Mariana permaneceram cegos à realidade, ao óbvio.
Na mesma semana, um ou dois dias antes do incêndio, uma tempestade provocou enormes prejuízos e perdas de vidas, no Rio de Janeiro.
Uma tempestade, embora previsível, não tem como se impedir que ocorra, mas os seus efeitos podem e devem ser minorados.
Não é o que ocorre. Nas últimas décadas, também confiando na providência divina, as autoridades cariocas permitiram todo tipo de ocupação desordenadas em todos os lugares da cidade e, principalmente, nas encostas dos morros.
O resultado foi aquele que se viu, mais sete mortes vítimas das chuvas? Não. Vítimas da improvidência. Do “é assim mesmo”; do “Deus quis assim”.
Só para complementar a sucessão de tragédias que ocorreram no país neste começo de ano, um acidente de helicóptero tirou a vida do jornalista Ricardo Boechat e do piloto da aeronave em que viajavam. Detalhe: a empresa não tinha autorização para fazer táxi aéreo. Apesar disso, exercia a atividade sem ser molestada por ninguém.
Assim como todo mundo via – e sabia –, que o “puxadinho” do Flamengo era irregular, mas nunca ninguém disse nada – segundo noticia-se o clube carioca recebeu mais de trinta multas pelo sei Centro de treinamento, nenhuma por conta do alojamento impróprio ou irregular dos jovens atletas.
O mesmo aconteceu com a barragem de Brumadinho. Todos, pelos agora, dizem que sabiam dos riscos, que o perigo era iminente – e era. Tanto que um engenheiro responsável por uma das das vistoria, disse, em depoimento, que se tivesse um filho trabalhando lá mandaria que saísse, e, ainda assim, ninguém fez ou disse nada para impedir a tragédia que sucederia dias depois.
E os filhos dos outros, maridos, esposas, amigos, etc.?
Todos preferiram o silêncio, a o omissão, a cumplicidade, manter os volumosos contratos com a gigante da mineração em detrimento das vidas humanas e dos prejuízos ambientais.
Há, ainda, a omissão cúmplice das autoridades que silenciam e acoitam todos os malfeitos e até coonestam com eles em troca de alguns trocados ou de outras vantagens.
Ninguém liga para os “puxadinhos” que vão se formando em todo o país; ninguém liga para as suas responsabilidades; ninguém quer parecer “chato” ou se indispor com pessoas ou empresas.
É essa “cegueira coletiva” que faz surgir as construções irregulares nas encostas; que oculta o alojamento “clandestino”, onde todos achavam ser uma garagem; a empresa de táxi aéreo pirata ou os “Brumadinhos” da vida.
Essa é a cultura do puxadinho, capaz de contaminar um dos maiores clubes de futebol do mundo; a segunda maior mineradora do mundo; uma pequena empresa de transporte aéreo ou mesmo o cidadão que, com desculpa de não ter onde morar, constrói, ante a omissão das autoridades, em lugares indevidos.
Todos sabem que fazem o errado, mas ninguém liga, confiam na providência divina para que o pior não aconteça.
Só que o pior acontece. Deus “cansou” de segurar a barra de tanta irresponsabilidade.
Enquanto continuarmos tolerando todo tipo de malfeitos, falta de compromisso com o certo, corrupção e bandalheira, continuaremos contanto os nossos mortos de cada dia.
Abdon Marinho é advogado.