AbdonMarinho - Uma nação sem bússola moral.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Uma nação sem bús­sola moral.


UMA NAÇÃO SEM BÚS­SOLA MORAL.

Por Abdon C. Marinho.

QUANDO COME­CEI a escr­ever há mais de uma década – digo escr­ever “profis­sion­al­mente” –, tinha por propósito con­tribuir, pelo menos com min­has ideias, com o cresci­mento do país, fazendo-​o um lugar mel­hor é uma janela de futuro para as ger­ações vin­douras.

Depois de todos esses anos, uma sen­sação de fra­casso me acom­panha. Tenho a impressão de que nada do que se possa dizer, insi­s­tir ou pon­derar terá qual­quer efeito para uma nação que parece ter per­dido sua bús­sola moral. Nada além dos próprios inter­esses dos “donos” do poder guiará a nação.

Agora mesmo recebo a notí­cia de que o Con­gresso Nacional prepara uma série de medi­das visando anis­tiar os par­tidos e políti­cos que des­cumpri­ram a lei no que ref­ere as cotas para mul­heres, negros ou mal gas­taram os recur­sos públi­cos ori­un­dos dos fun­dos par­tidários, eleitorais e tan­tos out­ros – car­ros, aviões, man­sões , pisci­nas e tudo mais foi o des­tino de recur­sos que dev­e­riam servir para ala­van­car a par­tic­i­pação de mul­heres e negros na política tor­nando a rep­re­sen­tação da nação mais plural.

A ideia dos nos­sos “líderes” é, pelo que li, “anis­tiar” todos os “malfeitos” ocor­ri­dos, inclu­sive, devol­vendo os man­da­dos per­di­dos em razão do des­cumpri­mento da lei e, noutra frente, tornar tais regras mais flexíveis.

Outra coisa que dese­jam é poderem gas­tar os recur­sos dos con­tribuintes com toda liber­dade do mundo. Fin­gem que prestaram con­tas e tudo fica bem.

As noti­cias dão conta que o “acórdão” já está sacra­men­tado. Um ou outro par­la­men­tar talvez esboce algum protesto mas nada que possa mudar o curso das coisas.

Na estraté­gia de tornar tudo ainda mais palatável aque­les que pode­riam ou teriam alguma força política para dizer algo, fiz­eram incluir regras favoráveis, na reforma trib­utária, aos par­tidos políti­cos, aos sindi­catos e as igre­jas.

Sobra-​me a impressão de que não temos um pro­jeto de nação, mas um pro­jeto de fra­casso institucional.

Vejam que as leis brasileiras já são exces­si­va­mente lenientes com os poderosos, em tudo, mas mesmo assim, firmes na ideia de que podem tudo, quando apan­hados no des­cumpri­mento de alguma norma, “inven­tam” uma anis­tia que os livrem de abor­rec­i­men­tos.

Só falta o Brasil ado­tar um sis­tema de leg­is­lação “flu­ida”, ou seja, que pode ser apli­cada ou não, con­forme o gosto do “freguês”.

O Brasil demorou décadas para garan­tir o dire­ito de par­tic­i­pação fem­i­nina na política – que ainda é baixís­sima –, e quando se esta­b­elece uma leg­is­lação que esta­b­elece cotas de par­tic­i­pação nas eleições, não é nas casas par­la­mentares ou nos poderes da República, e se começa a cobrar o cumpri­mento da lei com repri­menda aos que a vio­laram, chamam uma anis­tia, mudam a lei para torná-​la mais “flexível”.

Como ire­mos fazer do país uma nação igual­itária?

Ainda hoje mul­heres gan­ham bem menos que os homens para o exer­cí­cio das mes­mas ativi­dades – tanto assim que até tem uma lei tratando disso e só agora o STF decidiu que não se pode invo­car a defesa da honra nos crimes cometi­dos con­tra as mul­heres – e são mil­hares todos os anos.

A mesma “flex­i­bil­i­dade” e anis­tia diver­sas querem aplicar em relação as cotas para a par­tic­i­pação de negros no finan­cia­mento de cam­pan­has eleitorais.

O Brasil é um país que pos­sui uma pop­u­lação majori­tari­a­mente preta e parda, segundo os dados do IBGE, a despeito disso a par­tic­i­pação desse segui­mento na política nacional é restrita, seja no Con­gresso Nacional, nas Assem­bleias Leg­isla­ti­vas, nas Câmaras de Vereadores, nos poderes exec­u­tivos de todos os níveis e, tam­bém, no judi­ciário.

Dev­eríamos era ter políti­cas públi­cas que incen­ti­vassem o fim e bani­mento de tais seg­re­gações.

O que temos, o que se desenha é jus­ta­mente o con­trário, querem “flex­i­bi­lizar” as nor­mas de finan­cia­mento de can­didatos pre­tos e par­dos e de can­di­dat­uras femininas.

Pelo andar da car­ru­agem, pelo fim das punições, logo mais tornarão tais can­di­dat­uras “fac­ul­ta­ti­vas” e voltare­mos algu­mas décadas para trás.

O Brasil “não cumpre o dever de casa” e inibe a par­tic­i­pação dos segui­men­tos na vida política tornando-​a um ter­ritório da elite nacional.

Os dados do IBGE divul­ga­dos em 7 de julho último dizem que a edu­cação de cri­anças e ado­les­centes pre­tas e par­das – que são a maio­ria na pop­u­lação brasileira –, encontra-​se atrasada uma década em relação a edu­cação de cri­anças bran­cas.

Como podemos imag­i­nar que tais cidadãos ten­ham ascen­são social se desde a infân­cia a nação lhes roubam dez anos de vida?

Como imag­i­nar que o acesso aos fun­dos eleitorais para dis­putar um mandato ele­tivo é um “priv­ilé­gio” e por isso deve ser “flexibilizado”?

Os dados estão aí, à dis­posição de todos, prin­ci­pal­mente daque­les que dev­e­riam pen­sar em políti­cas públi­cas que tornem o país mais inclusivo.

A edu­cação brasileira encontra-​se atrasada mais de uma década em relação a out­ros países nas mes­mas condições que o nosso. Logo, edu­cação de pre­tos e par­dos encontra-​se, na ver­dade, com vinte anos de atraso. São vinte anos de atraso e não se faz nada para com­bater tal desigual­dade.

A edu­cação de que tratam as pesquisas e que efe­ti­va­mente conta é a edu­cação pública, aquela que é ofer­tada a todas as cri­anças do país de 7 a 14 anos e que não tem evoluído e pos­si­bil­i­tado a ascen­são social de todos por seus próprios méri­tos.

Antes dos “donos poder” agirem para anu­larem con­quis­tas históri­cas de mul­heres, pre­tos, par­dos, indí­ge­nas e out­ras mino­rias do espec­tro mul­ti­fac­etado que com­põem a pop­u­lação brasileira, dev­e­riam, na ver­dade, eram bus­car soluções para essa desigual­dade que se man­tém desde sem­pre no nosso país.

Os des­ti­nos do país não podem con­tin­uar uni­ca­mente nas mãos de políti­cos bran­cos e do sexo mas­culino pois não rep­re­sen­tam o povo brasileiro, aque­les que sofrem, na ponta, as con­se­quên­cias de suas decisões.

Mas, infe­liz­mente, é isso que vem se desen­hando com a “cumpli­ci­dade” de todos. Logo mais o país volta ao sis­tema de voto cen­sitário que já fez muito sucesso nos idos de 1800.

A bús­sola moral do país entra em “curto” quando vemos um min­istro do STF dizer que acor­dos de leniên­cia fir­mado no curso da Lava Jato onde empre­sas con­fes­saram deli­tos cometi­dos e até mesmo estão devol­vendo parte do alcance, não valeram.

Durante dez anos de existên­cia a oper­ação Lava Jato apurou, con­fron­tou provas e con­seguiu recu­perar já mais de seis bil­hões de reais.

Se agora decide-​se que nada disso “valeu”, a nação pre­cisa for­malizar um pedido de des­cul­pas e devolver a eles os recur­sos que con­fes­saram terem adquiri­dos como fruto de sub­or­nos, fraudes e tan­tos out­ros crimes.

Uma dúvida me assalta: se os réus con­fes­sos, con­de­na­dos e “resti­tu­idores” do alheio são “inocentes” ou imunes as penas, quem são os ver­dadeiros cul­pa­dos? Quando e por quais crimes respon­derão?

Em meio a tan­tos absur­dos, eis que nos aparece o pres­i­dente, que na atual quadra mais parece um palpiteiro-​geral da República, sug­erindo que os votos dos min­istros do STF sejam sig­ilosos. Aí a bús­sola moral da nação entra em pane.

Sou uma pes­soa afeita ao debate, acho que em nome do bem comum é pos­sível dis­cu­tir, debater ideias, encon­trar soluções para os prob­le­mas da sociedade.

Ocorre que o debate nacional, parece-​me encoberto por corti­nas de fumaça enquanto o que se busca, sem qual­quer pudor, é a manutenção do sta­tus quo de uma elite que age para levar o país de volta ao régime feu­dal.

Os cidadãos de bem tra­bal­ham quase metade do ano só para pagar impos­tos enquanto a elite con­sti­tuída pelos “donos do poder” os gas­tam “sem tomarem chegada”, como dizia um amigo.

Nada disso é novi­dade, Vieira, no seu “Ser­mão do Bom Ladrão”, dizia: “Não são só ladrões … os que cor­tam bol­sas ou espre­itam os que se vão ban­har, para lhes col­her a roupa: os ladrões que mais própria e dig­na­mente mere­cem este título são aque­les a quem os reis encomen­dam os exérci­tos e legiões, ou o gov­erno das provín­cias, ou a admin­is­tração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despo­jam os povos. — Os out­ros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os out­ros fur­tam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os out­ros, se fur­tam, são enfor­ca­dos: estes fur­tam e enfor­cam”.

É de perguntar-​se: o que mudou de 1655, quando Vieira pro­feriu tal ser­mão para cá? Nada con­tin­u­amos o punir com os rig­ores da lei os que fur­tam um pedaço de carne, os que roubam uma peça de rouba ou uns bis­coitos, mas man­te­mos (com os nos­sos votos) aque­les que não têm quais­quer com­pro­mis­sos com os des­ti­nos do país e que usam dos poderes del­e­ga­dos pelo povo para enrique­cerem cada vez mais, sem risco, sem medo e mudando a lei quando lhes con­vém.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.