AbdonMarinho - Todos contra Dallagnol?
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Todos con­tra Dallagnol?


TODOS CON­TRA DALLAGNOL?

Por Abdon C. Marinho*.

CHEGAVA a Pin­heiro, no começo da noite de terça-​feira, 16, quando fui alcançado pela notí­cia de que o Tri­bunal Supe­rior Eleitoral — TSE, dera provi­mento a recurso ordinário em pedido de reg­istro de can­di­datura para inde­ferir o reg­istro de Deltan Dal­lagnol, dep­utado fed­eral pelo Podemos-​PR.

Fora do habit­ual, por conta da eleição do quinto con­sti­tu­cional da Ordem dos Advo­ga­dos do Brasil, Sec­cional do Maran­hão — OAB/​MA, na qual con­corri e fui fragorosa­mente der­ro­tado pela segunda vez, deixei a Ilha no ferry-​boat das 16 horas, antes do resul­tado do cer­tame, mas a tempo de não chegar muito tarde na região do alto Turi, onde teríamos com­pro­mis­sos durante todo o dia.

As duas notí­cias chegaram jun­tas e antes mesmo que tivesse tempo de “lam­ber” as feri­das da der­rota no cer­tame da OABMA, os ami­gos já estavam querendo saber minha opinião sobre a cas­sação do Dal­lagnol ou instigando-​me a escr­ever sobre o assunto.

Muitos destes ami­gos, con­forme a própria incli­nação política, com a própria opinião ou “acórdão” for­mado à espera de um aval da minha parte.

Segundo os lulis­tas, o TSE agiu na estrita obe­diên­cia da Lei da Ficha Limpa (LC 1352010), sendo o pedido de reg­istro inde­ferido com justiça.

Já para os bol­sonar­is­tas, aquela corte, notada­mente o min­istro Bened­ito Gonçalves, rela­tor do acórdão, agira como o menino baiano da piada muito pop­u­lar, segundo a qual o baian­inho grita para a mãe: — mãi­inha, mãi­inha, temos remé­dio para pic­ada de cobra? —por que, menino? Você foi pic­ado? Per­gunta à mãe. Ao que o guri responde: — não, mãi­inha, mas a cobra já está vindo acolá, na minha direção.

Ainda segundo esses críti­cos, inclu­sive, alguns juris­tas reno­ma­dos, o TSE teria apli­cado uma penal­i­dade com base no “nada jurídico”, na suposição do que pode­ria vir a acon­te­cer.

Algo bem assemel­hado ao que assis­ti­mos no filme Minor­ity Report — A Nova Lei, clás­sico de 2002, dirigido por Steven Spiel­berg e tendo Tom Cruise como pro­tag­o­nista. No filme, para os que não lem­bram, um depar­ta­mento espe­cial­izado da polí­cia chamado “Pré-​Crime” prende as pes­soas basea­dos no con­hec­i­mento prévio fornecido por três videntes de que aque­las pes­soas come­te­riam crimes no futuro.

Para estes críti­cos a Corte Eleitoral se afas­tou do expresso comando legal pre­visto na Lei Com­ple­men­tar nº. 64/​1990, com as alter­ações trazi­das pela LC 1352010: “q) os mag­istra­dos e os mem­bros do Min­istério Público que forem aposen­ta­dos com­pul­so­ri­a­mente por decisão san­cionatória, que ten­ham per­dido o cargo por sen­tença ou que ten­ham pedido exon­er­ação ou aposen­ta­do­ria vol­un­tária na pendên­cia de processo admin­is­tra­tivo dis­ci­pli­nar, pelo prazo de 8 (oito) anos”.

Em uma nação polar­izada entre o “nós con­tra eles” com o clima de “fla-​flu” na final de campe­onato brasileiro, dire­cio­nando as emoções, faz-​se necessário um pouco de água na fer­vura ou, como diziam os anti­gos, “nem tanto aos céus, nem tanto à terra”.

Sou advo­gado há mais de vinte e cinco anos e com atu­ação no ramo do dire­ito eleitoral há mais trinta (tendo ini­ci­ado a fre­quên­cia assí­dua ao TRE/​MA nas eleições de 1992, como estag­iário), o que me obriga a ten­tar enten­der as decisões dos tri­bunais – ainda que delas dis­corde, sem os aço­da­men­tos das mil­itân­cias políti­cas –, sobre­tudo, quando elas são unân­imes.

A Justiça Eleitoral é uma justiça espe­cial­izada cri­ada por decreto, em 1932.

Desde então inte­gra a estru­tura judi­ciária brasileira com rel­e­vantes serviços presta­dos a nossa democ­ra­cia. Por sua natureza, nos ter­mos da Con­sti­tu­ição, art. 119, é com­posto por, no mín­imo, sete juízes, sendo três, den­tre os min­istros do Supremo Tri­bunal Fed­eral — STF; dois, den­tre os min­istros do Supe­rior Tri­bunal de Justiça — STJ; e dois, por nomeação do Pres­i­dente da República, den­tre seis advo­ga­dos de notável saber jurídico e idonei­dade moral, indi­ca­dos pelo STF.

Vejam que são sete jul­gadores (na atual com­posição: seis homens e uma mul­her) vin­dos de tri­bunais dis­tin­tos e da advo­ca­cia, ori­un­dos de esta­dos difer­entes da fed­er­ação, escol­hi­dos para seus tri­bunais de origem por pres­i­dentes diver­sos, den­tre os quais, três escol­hi­dos pelo ex-​presidente Bol­sonaro, um do STF e os dois juris­tas, e den­tre os seis, nen­hum deles opôs qual­quer reparo, ou pediu vis­tas para mel­hor exam­i­nar, ou dis­cor­dou, ainda que pon­tual­mente, do voto do rela­tor, Bened­ito Gonçalves, rela­tor do processo.

Estavam jul­gando o reg­istro de can­di­datura de um dep­utado fed­eral, con­hecido e recon­hecido nacional­mente por seu tra­balho como mem­bro do Min­istério Público no com­bate à cor­rupção e como “líder” da Oper­ação Lava Jato, que teve a maior votação (344.917 votos) para o cargo em que con­cor­reu no Estado do Paraná.

Mesmo assim, como dito acima, nen­hum dos demais jul­gadores teve qual­quer dúvida ou fez qual­quer objeção ou mesmo pediu vis­tas para exam­i­nar mel­hor o processo, emb­ora, sem nada a ver, nem mesmo aque­les juízes indi­ca­dos pelo ex-​presidente Bol­sonaro, encon­trou dúvida ou viu obstácu­los que os impedis­sem de acom­pan­har o rela­tor do processo no seu voto, o que afasta a ideia de que o min­istro Bened­ito Gonçalves seria o menin­inho baiano que avis­tou a cobra acolá e induziu que seria pic­ado por ela; ou o Tom Cruise do filme Minor­ity Report, chefe do depar­ta­mento de Pré-​Crime, pren­dendo os crim­i­nosos antes dos crimes serem cometi­dos; ou mesmo alguém que age com base na con­ju­gação dos ver­bos no futuro do pretérito.

A propósito, o min­istro Gonçalves é car­i­oca.

Bem difer­ente das con­tro­vér­sias surgi­das a pos­te­ri­ori, o jul­ga­mento deu-​se na tran­quil­i­dade de uma noite de natal em maio, com todos os jul­gadores con­cor­dando com o voto do rela­tor, e o jul­ga­mento se encer­rando em menos de dez min­u­tos.

Ora, cas­sar o reg­istro de um dep­utado fed­eral, pes­soa pública recon­hecida nacional­mente, mais votado no seu estado – e, em decor­rên­cia disso, torná-​lo inelegível por oito anos –, sem um mísero fiapo de dis­cordân­cia, como pode?

Obriguei-​me a fazer uma leitura min­u­ciosa do voto do min­istro Gonçalves. Ele tem 37 pági­nas, das quais, 4 pági­nas são con­sum­i­das só com a ementa.

Um jul­ga­mento tão rel­e­vante, capaz de des­per­tar tan­tas paixões e com uma matéria tão con­tro­ver­tida, para ser con­cluído em menos de dez min­u­tos imag­ino (só imag­ino) que o voto tenha sido dis­tribuído antes aos demais jul­gadores (que con­cor­daram, imag­i­nação minha, mais uma vez), deixando para o jul­ga­mento, pro­pri­a­mente dito, ape­nas a leitura da ementa, isso é comum.

Se isso, de fato, ocor­reu, sig­nifica que mesmo con­hecendo o voto ante­ci­pada­mente, nen­hum dos jul­gadores viu motivo para dis­cor­dar do rela­tor.

Em lin­has gerais, a cas­sação do reg­istro de Deltan Dal­lagnol deu-​se com base no dis­pos­i­tivo já referido acima (art. 1º, I, q, da LC 6490), tendo o TSE enten­dido, de forma unân­ime, que ele (Deltan) ten­tou frau­dar a “lei da ficha limpa”, ante­ci­pando o pedido de afas­ta­mento do Min­istério Público Fed­eral quando encontrava-​se na eminên­cia de ter con­tra si proces­sos admin­is­tra­tivos dis­ci­pli­nares (PAD’s) aber­tos.

Diz o rela­tor: “é inequívoco que o recor­rido, quando de sua exon­er­ação a pedido, já havia sido con­de­nado às penas de advertên­cia e cen­sura em dois proces­sos admin­is­tra­tivos dis­ci­pli­nares fin­dos, e que, ainda, tinha con­tra si 15 pro­ced­i­men­tos diver­sos em trâmite no Con­selho Nacional do Min­istério Público (CNMP) para apu­rar out­ras infrações funcionais”.

Mais adi­ante, após citar o Tratado de Dire­ito Pri­vado de Pontes de Miranda – e qual­quer voto que cite Pontes de Miranda merece respeito –, afirma: “Em out­ras palavras, o objeto da con­tro­vér­sia em apreço não é, como quer fazer crer o recor­rido, a pos­si­bil­i­dade ou não de se con­ferir inter­pre­tação amplia­tiva ao termo “processo admin­is­tra­tivo dis­ci­pli­nar”. O que aqui se tem é uma con­duta ante­rior e con­trária ao Dire­ito para evi­tar a instau­ração desses proces­sos, ou seja, fraude à lei”.

O voto do min­istro Gonçalves é muito bem fun­da­men­tado – e nisso reside uma das belezas do dire­ito –, não se trata de algo ter­a­tológico como muitos tem divul­gado, trata-​se de um voto con­sis­tente – tanto assim que con­tou com o apoio unân­ime dos seus pares –, e que difi­cil­mente será rever­tido.

Para os fiéis devo­tos da Lei da Ficha Limpa, entre os quais o próprio Deltan Dal­lagnol, temos ela aí na sua mais fiel con­cepção, como, aliás, declarou, já a respeito deste mesmo processo, um dos seus ide­al­izadores.

Não sei se cabe aqui qual­quer juízo de valor, se foi justo ou injusto o jul­ga­mento – ainda mais quando temos tan­tos cor­rup­tos nos mais ele­va­dos car­gos em todas as instân­cias da República –, mas, sim, se houve o amparo legal na decisão Corte.

Na esteira do voto que li – e que salvei para uti­lizar em situ­ações futuras –, a Lei da Ficha Limpa entra em um novo está­gio, e, diante disso, sim, houve amparo jurídico na decisão.

Não sei se isso é motivo para fes­te­jar ou nos inqui­etar­mos.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.

P.S. O jul­ga­mento de Deltan Dal­lagnol, pela sua com­plex­i­dade jurídica, soci­ológ­ica e política é algo que deman­dará out­ros tex­tões. Cer­ta­mente, voltare­mos a ele.