Todos contra Dallagnol?
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- Criado: Domingo, 21 Maio 2023 14:50
- Escrito por Abdon Marinho
TODOS CONTRA DALLAGNOL?
Por Abdon C. Marinho*.
CHEGAVA a Pinheiro, no começo da noite de terça-feira, 16, quando fui alcançado pela notícia de que o Tribunal Superior Eleitoral — TSE, dera provimento a recurso ordinário em pedido de registro de candidatura para indeferir o registro de Deltan Dallagnol, deputado federal pelo Podemos-PR.
Fora do habitual, por conta da eleição do quinto constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Maranhão — OAB/MA, na qual concorri e fui fragorosamente derrotado pela segunda vez, deixei a Ilha no ferry-boat das 16 horas, antes do resultado do certame, mas a tempo de não chegar muito tarde na região do alto Turi, onde teríamos compromissos durante todo o dia.
As duas notícias chegaram juntas e antes mesmo que tivesse tempo de “lamber” as feridas da derrota no certame da OABMA, os amigos já estavam querendo saber minha opinião sobre a cassação do Dallagnol ou instigando-me a escrever sobre o assunto.
Muitos destes amigos, conforme a própria inclinação política, com a própria opinião ou “acórdão” formado à espera de um aval da minha parte.
Segundo os lulistas, o TSE agiu na estrita obediência da Lei da Ficha Limpa (LC 135⁄2010), sendo o pedido de registro indeferido com justiça.
Já para os bolsonaristas, aquela corte, notadamente o ministro Benedito Gonçalves, relator do acórdão, agira como o menino baiano da piada muito popular, segundo a qual o baianinho grita para a mãe: — mãiinha, mãiinha, temos remédio para picada de cobra? —por que, menino? Você foi picado? Pergunta à mãe. Ao que o guri responde: — não, mãiinha, mas a cobra já está vindo acolá, na minha direção.
Ainda segundo esses críticos, inclusive, alguns juristas renomados, o TSE teria aplicado uma penalidade com base no “nada jurídico”, na suposição do que poderia vir a acontecer.
Algo bem assemelhado ao que assistimos no filme Minority Report — A Nova Lei, clássico de 2002, dirigido por Steven Spielberg e tendo Tom Cruise como protagonista. No filme, para os que não lembram, um departamento especializado da polícia chamado “Pré-Crime” prende as pessoas baseados no conhecimento prévio fornecido por três videntes de que aquelas pessoas cometeriam crimes no futuro.
Para estes críticos a Corte Eleitoral se afastou do expresso comando legal previsto na Lei Complementar nº. 64/1990, com as alterações trazidas pela LC 135⁄2010: “q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos”.
Em uma nação polarizada entre o “nós contra eles” com o clima de “fla-flu” na final de campeonato brasileiro, direcionando as emoções, faz-se necessário um pouco de água na fervura ou, como diziam os antigos, “nem tanto aos céus, nem tanto à terra”.
Sou advogado há mais de vinte e cinco anos e com atuação no ramo do direito eleitoral há mais trinta (tendo iniciado a frequência assídua ao TRE/MA nas eleições de 1992, como estagiário), o que me obriga a tentar entender as decisões dos tribunais – ainda que delas discorde, sem os açodamentos das militâncias políticas –, sobretudo, quando elas são unânimes.
A Justiça Eleitoral é uma justiça especializada criada por decreto, em 1932.
Desde então integra a estrutura judiciária brasileira com relevantes serviços prestados a nossa democracia. Por sua natureza, nos termos da Constituição, art. 119, é composto por, no mínimo, sete juízes, sendo três, dentre os ministros do Supremo Tribunal Federal — STF; dois, dentre os ministros do Superior Tribunal de Justiça — STJ; e dois, por nomeação do Presidente da República, dentre seis advogados de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo STF.
Vejam que são sete julgadores (na atual composição: seis homens e uma mulher) vindos de tribunais distintos e da advocacia, oriundos de estados diferentes da federação, escolhidos para seus tribunais de origem por presidentes diversos, dentre os quais, três escolhidos pelo ex-presidente Bolsonaro, um do STF e os dois juristas, e dentre os seis, nenhum deles opôs qualquer reparo, ou pediu vistas para melhor examinar, ou discordou, ainda que pontualmente, do voto do relator, Benedito Gonçalves, relator do processo.
Estavam julgando o registro de candidatura de um deputado federal, conhecido e reconhecido nacionalmente por seu trabalho como membro do Ministério Público no combate à corrupção e como “líder” da Operação Lava Jato, que teve a maior votação (344.917 votos) para o cargo em que concorreu no Estado do Paraná.
Mesmo assim, como dito acima, nenhum dos demais julgadores teve qualquer dúvida ou fez qualquer objeção ou mesmo pediu vistas para examinar melhor o processo, embora, sem nada a ver, nem mesmo aqueles juízes indicados pelo ex-presidente Bolsonaro, encontrou dúvida ou viu obstáculos que os impedissem de acompanhar o relator do processo no seu voto, o que afasta a ideia de que o ministro Benedito Gonçalves seria o menininho baiano que avistou a cobra acolá e induziu que seria picado por ela; ou o Tom Cruise do filme Minority Report, chefe do departamento de Pré-Crime, prendendo os criminosos antes dos crimes serem cometidos; ou mesmo alguém que age com base na conjugação dos verbos no futuro do pretérito.
A propósito, o ministro Gonçalves é carioca.
Bem diferente das controvérsias surgidas a posteriori, o julgamento deu-se na tranquilidade de uma noite de natal em maio, com todos os julgadores concordando com o voto do relator, e o julgamento se encerrando em menos de dez minutos.
Ora, cassar o registro de um deputado federal, pessoa pública reconhecida nacionalmente, mais votado no seu estado – e, em decorrência disso, torná-lo inelegível por oito anos –, sem um mísero fiapo de discordância, como pode?
Obriguei-me a fazer uma leitura minuciosa do voto do ministro Gonçalves. Ele tem 37 páginas, das quais, 4 páginas são consumidas só com a ementa.
Um julgamento tão relevante, capaz de despertar tantas paixões e com uma matéria tão controvertida, para ser concluído em menos de dez minutos imagino (só imagino) que o voto tenha sido distribuído antes aos demais julgadores (que concordaram, imaginação minha, mais uma vez), deixando para o julgamento, propriamente dito, apenas a leitura da ementa, isso é comum.
Se isso, de fato, ocorreu, significa que mesmo conhecendo o voto antecipadamente, nenhum dos julgadores viu motivo para discordar do relator.
Em linhas gerais, a cassação do registro de Deltan Dallagnol deu-se com base no dispositivo já referido acima (art. 1º, I, q, da LC 64⁄90), tendo o TSE entendido, de forma unânime, que ele (Deltan) tentou fraudar a “lei da ficha limpa”, antecipando o pedido de afastamento do Ministério Público Federal quando encontrava-se na eminência de ter contra si processos administrativos disciplinares (PAD’s) abertos.
Diz o relator: “é inequívoco que o recorrido, quando de sua exoneração a pedido, já havia sido condenado às penas de advertência e censura em dois processos administrativos disciplinares findos, e que, ainda, tinha contra si 15 procedimentos diversos em trâmite no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para apurar outras infrações funcionais”.
Mais adiante, após citar o Tratado de Direito Privado de Pontes de Miranda – e qualquer voto que cite Pontes de Miranda merece respeito –, afirma: “Em outras palavras, o objeto da controvérsia em apreço não é, como quer fazer crer o recorrido, a possibilidade ou não de se conferir interpretação ampliativa ao termo “processo administrativo disciplinar”. O que aqui se tem é uma conduta anterior e contrária ao Direito para evitar a instauração desses processos, ou seja, fraude à lei”.
O voto do ministro Gonçalves é muito bem fundamentado – e nisso reside uma das belezas do direito –, não se trata de algo teratológico como muitos tem divulgado, trata-se de um voto consistente – tanto assim que contou com o apoio unânime dos seus pares –, e que dificilmente será revertido.
Para os fiéis devotos da Lei da Ficha Limpa, entre os quais o próprio Deltan Dallagnol, temos ela aí na sua mais fiel concepção, como, aliás, declarou, já a respeito deste mesmo processo, um dos seus idealizadores.
Não sei se cabe aqui qualquer juízo de valor, se foi justo ou injusto o julgamento – ainda mais quando temos tantos corruptos nos mais elevados cargos em todas as instâncias da República –, mas, sim, se houve o amparo legal na decisão Corte.
Na esteira do voto que li – e que salvei para utilizar em situações futuras –, a Lei da Ficha Limpa entra em um novo estágio, e, diante disso, sim, houve amparo jurídico na decisão.
Não sei se isso é motivo para festejar ou nos inquietarmos.
Abdon C. Marinho é advogado.
P.S. O julgamento de Deltan Dallagnol, pela sua complexidade jurídica, sociológica e política é algo que demandará outros textões. Certamente, voltaremos a ele.