O DESAFIO DA DEMOCRACIA EM TEMPOS DE POLARIZAÇÃO.
Por Abdon C. Marinho.
QUANDO menino aprendi uma lição nas aulas de educação moral e cívica que trago comigo até hoje: “o meu direito acaba quando começa o direito do meu vizinho”.
Acho que as demais gerações que vieram antes da minha e até aquelas que imediatamente a sucederam aprenderam isso na infância.
Era essa a primeira noção de “democracia” que tínhamos. Ou seja, éramos sujeitos de direitos mas que esses direitos tinham limites. Eles precisavam respeitar os direitos dos demais.
Nessa mesma linha, também aprendi nos primeiros anos do ensino médio, nas aulas de OSPB, com a professora Maria da Luz, do Liceu Maranhense: “cada direito corresponde a um dever”.
Já na juventude aprendi uma outra frase de máxima importância: “fora da lei não há salvação”. Essa última de autoria do nosso Rui Barbosa.
Vemos em cada uma das frases (ou lições) que a vida em comunidade exige o respeito aos direitos dos demais, que aos nossos direitos existem deveres correspondentes e, que, finalmente, precisamos, sujeitos ativos e passivos de direitos e deveres nos submetermos aos ditames da lei.
Como podemos perceber são conceitos básicos que, sequer, precisaríamos de escolas para aprendermos e, principalmente, respeitar.
Mas, porém, entretanto, como dizia um outro, nos dias atuais parece que vivemos em um mundo paralelo onde conceitos elementares parecem não fazer qualquer sentido ou porque as pessoas fingem não saber ou porque não querem saber por suas próprias conveniências de ordem politica ou ideológica.
Outro dia o “mundo quase veio abaixo” por causa de uma decisão da justiça eleitoral que suspendeu as redes sociais de um determinado candidato.
De norte a sul do país o que se falava era que o candidato fora injustiçado, censurado, teria tido suas livres manifestações de pensamento tolhidas, etceteras e tal.
Um dos ramos do direito que mais aprecio é o direito eleitoral. Já nos primeiros anos de faculdade estava às voltas com mesmo – e até antes, participando dos processos eleitorais.
Uma das suas principais características é todas as condutas a serem tomadas pelos candidatos e pelos demais agentes estão milimetricamente definidas. As leis que regem as eleições e os partidos políticos são excessivamente detalhistas e as resoluções editadas pelo TSE complementam o serviço, mas, claro, a criatividade dos políticos brasileiros é muito maior.
Outra característica fascinante é que no direito eleitoral temos um calendário que se inicia, com regras para os vários agentes ainda no ano anterior e segue pelo ano da eleição estabelecendo o papel e o tempo de cada um até o encerramento do processo.
Isso tudo tem uma razão de ser: objetiva dar aos candidatos e candidatas e aos partidos as mesmas condições na disputa eleitoral.
Elementar que todos os candidatos saibam disso. E sabem. Acontece que muitos acham que vale a pena burlar o sistema, aproveitar-se do poderio econômico e/ou político para tirar proveito eleitoral.
Mas, muito pior que isso é muitos, muitos mesmo acha que isso é o certo a ser feito.
Ora, se o candidato burlou as regras para todos estabelecidas ele deve sofrer as consequências dos seus atos.
Ah, se ele inflou as redes sociais para influenciar os eleitores de forma indevida, deve se fazer vista grossa a esse comportamento? Não creio que seja o correto.
A punição já se encontra definida na lei.
E se daquela conduta abusiva decorrer outras vantagens, também deve responder por elas.
É aquela lição da professora Margarida lá do ensino primário: o seu direito só vai até o direito dos demais vizinhos. No caso, dos demais candidatos.
Um outro fato singelo mas que também ganhou ares de escândalo planetário foi a decisão da Justiça brasileira de determinar a suspensão de uma rede social enquanto essa não designar uma representação no país.
O “mundo inteiro” e também as galáxias vizinhas só falam disso. Um amigo até me perguntou se escreveria sobre isso.
Pois bem, na linha do ensinou a professora Maria da Luz nos primeiros anos do ensino médio, cada direito corresponde a um dever.
Independente de quaisquer circunstâncias adicionais, uma nação livre e soberana permite que você se instale no seu país onde você aufere milhões ou bilhões em lucros anuais o mínimo que você deve fazer é prestar contas de seus atos. Um direito, um dever.
No caso em tela a empresa instalada no país recusou-se reiteradamente a cumprir as decisões da justiça e multada por isso decidiu não mais ter representação no país.
Vejamos, em relação ao mérito das decisões judiciais existem as searas próprias para questionar e tendo poderio todo que tem uma grande empresa, inclusive, discutir ou expor ao julgamento público a justeza ou não das mesmas.
Noutro giro, é a própria legislação brasileira que impõe a necessidade da empresa possuir sede/representação no país.
O que restaria à justiça brasileira fazer senão exigir o cumprimento da legislação e no seu descumprimento aplicar as sanções legais?
Essa é a questão principal a não admitir qualquer outra possibilidade. Temos uma legislação que exige que qualquer empresa o opere no Brasil tenha uma sede/representação no território nacional.
Uma dessas empresas se recusa a cumprir a lei e é para ficar por isso mesmo? O cidadão se acha acima da lei que serve para todos os demais?
Ah, mais muitas pessoas estão sendo prejudicadas com a suspensão da rede social, pessoas estão perdendo dinheiro, sustento, etc.
Essas são razões válidas para colocarmos uma grande empresa, que lucra bilhões anualmente no país, acima das nossas leis?
Acho que qualquer pessoa física ou jurídica tem todo o direito de questionar uma ordem judicial, mas isso deve dar-se dentro das balizas da lei.
Não me parece razoável que qualquer pessoa simplesmente diga que não vai cumprir as decisões judiciais e fique por isso mesmo.
E, principalmente, que alguém se recuse a cumprir a lei do país onde opera e não sofra qualquer consequência.
Será que alguém acha razoável que uma empresa operando e lucrando no Brasil diga categoricamente que daí em diante não vai cumprir as decisões judiciais e pior, que não seguir as leis país sem nada lhe suceder?
Não sou o dono da razão, mas não me parece razoável.
O mais grave de tudo isso é vermos milhares de brasileiros, talvez milhões, muitos formadores de opinião defendendo que uma nação soberana aceite esse tipo de coisa: que a empresa não apenas se recuse a cumprir decisões judiciais como a respeitar a legislação do país.
No meu ponto de vista não faz qualquer sentido.
Não consigo compreender como cidadãos brasileiros, patriotas, defendam que uma empresa – qualquer empresa –, possa se recusar a cumprir as leis do país e continuar operando (e lucrando) como se nada tivesse acontecido.
Ora, essa é a postura é bem diferente do que aprendi com Rui: “não existe salvação fora lei”.
Como os amigos e leitores podem perceber, no texto presente evitei “dá nome aos bois”, falando no genérico e isso tem o propósito de mostrar que se destina a qualquer um.
Essa polarização ridícula acaba por “corroer o cérebro” das pessoas a ponto de não fazê-las compreender conceitos básicos como os descortinados no texto ou até mesmo a compreenderem o que seja uma nação soberana.
Esse é o principal desafio da democracia brasileira: a população não consegue “ficar do mesmo lado” nem mesmo quando a soberania nacional – que levamos tanto tempo para conquistar –, é afrontada.
Em passado distante pelos anos vinte e trinta do século passado, defenderam que o Brasil fosse uma nação-satélite da antiga União Soviética.
Não tarda alguém passará a defender que voltemos ao status de colônia. E, pior, colônia de empresa.
Abdon C. Marinho é advogado.