AOS MESTRES, COM MUITO CARINHO.
Por Abdon Marinho.
DESDE que meu pai disse que iria me dar algo que ninguém jamais iria me tomar e matriculou-me em uma escola que tenho especial devoção pelo ensino público.
Minhas primeiras lembranças remontam a uma escolinha de “latada”, coberta de palha, meia-parede em pau a pique com um “oitão” inteiro ao fundo onde ficava o quadro-negro; sobre o chão de terra batida, os bancos escolares com capacidade para dois alunos.
A escolinha, das minhas lembranças, ficava em um descampado entre as casas de dois tios, tio Antônio e tio Praxedes.
Foi lá, naquela escolinha, que tive os primeiros contatos com letras e com a educação pública – e de onde nunca me afastei.
Fiquei pouco tempo, acho que meses, depois fui morar com meus irmãos em uma casa na Rua do Sossego, Governador Archer, alugada e mantida com a finalidade de estudarmos. Fui matriculado na minha primeira escola de verdade, a Unidade Integrada Aldenora Belo e virei aluno da professora Margarida.
Depois fomos morar em Gonçalves Dias passando a estudar na Unidade Integrada Castelo Branco, onde conclui o primário (anos iniciais); e no Bandeirantes, a mesma escola no turno noturno, conclui o ginásio (que corresponde aos anos finais do fundamental).
Na expectativa de um aprendizado melhor fui “mudado” para São Luís, para fazer o ensino médio no Liceu Maranhense.
Já era meados dos anos oitenta, final do governo Luis Rocha, início da redemocratização do país, ressurgimento do movimento estudantil secundário.
Por conta disso participei ativamente das campanhas salariais dos nossos professores por melhorias salariais e melhores condições de ensino.
Naquele ano, 1986, uma greve geral do professores com tais pautas, durou aproximadamente 60 dias. Foram sessenta dias nos reversando entre a sede do sindicato na Rua Henrique Leal, no Centro Histórico e Praça Deodoro ou na frente do Liceu onde fazíamos as manifestações diárias.
Os mais antigos devem lembrar daqueles dias loucos.
Certa vez fazíamos um protesto em frente ao Liceu quando caiu um toró sem igual. Um toró de março. Todos na chuva sem arredar o pé, enquanto alguns servidores da escola e direção nos chamavam para entrarmos no prédio e sairmos da chuva. O professor Brandão, diretor vespertino, dias depois, comentaria comigo e outros colegas que só havia visto manifestação semelhante em uma passagem de sua vida por Bogotá, na Colômbia, que vivera dias de grandes efervescência.
Depois sobreveio os cinco anos do curso de Direito na Universidade Federal do Maranhão - UFMA e também as suas lutas por melhores condições de ensino, melhores condições de trabalho para os mestres e servidores, o movimento estudantil, etc.
A vida profissional na área da advocacia pública, principalmente municipalista, sempre me permitiu acompanhar todas as dificuldades do ensino público brasileiro. De meados dos anos setenta até hoje acompanhei todos seus problemas e, também, os pequenos avanços e recuos.
Com os meus mestres aprendi quase tudo que sei e à escola pública devo tudo que sou.
Acho oportuno historiar todos estes fatos – e assim saberem que não se trata de um “à toa” falando –, para dizer que por uma contingência profissional e por um dever de cidadania, vi-me obrigado a colocar-me contrário aos mestres que tanto admiro e respeito.
Pois bem, como advogado e por conta desta familiaridade com as questões ligadas à educação fui convidado para participar de uma reunião para discutir a pauta de reivindicações dos mestres municipais – na verdade, do sindicato da categoria –, sob pena de paralização dos mesmos, o que prejudicará milhares de estudantes e, em um efeito bumerangue, a eles próprios.
Não apenas como advogado, mas como cidadão, coloquei-me contrário as suas reivindicações. No caso em tela, e que acredito seja a mesma situação de diversos municípios, os mestres já ganham acima do piso salarial previsto na Constituição Federal e regulamentado por lei e possuem plano de carreira, outra previsão constitucional.
Conforme esclareci aos mesmos, muito embora possam ter direitos a um novo reajuste salarial, por conta de algum mecanismo do seu estatuto, não acho correto, ético e moralmente aceitável que já consumindo mais de oitenta por cento do orçamento da educação, pleiteiem um aumento que destinem para o pagamento dos servidores públicos efetivos da educação todos os recursos do FUNDEB – no caso, o aumento salarial pleiteado, caso implantado, não apenas irá consumir todos os recursos destinados à educação como ainda se terá que buscar receita de outras áreas para completar.
Disse-lhes mais: não achava justo a municipalidade descumprir a própria Constituição e a Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF, para atendê-los, uma vez que ela limita os gastos com pessoal.
A Constituição estabelece que estados e municípios deverão investir nunca menos que vinte e cinco por cento de sua receita na educação.
Este “piso” de gastos é para educação de uma forma geral, englobando o pagamento de servidores e a sua manutenção.
Muito embora seja um “piso”, os entes federados não podem se afastar muito dele sob pena de faltar recursos para outras áreas como a saúde, a infraestrutura, a assistência social, a segurança pública, o pagamento dos demais servidores e todas as demais despesas que devem “caber” no orçamento público.
No caso dos municípios – que raramente dispõem de arrecadação –, a necessidade de equilíbrio entre as diversas despesas faz-se muito mais exigida.
Não deveria ser motivo de orgulho para ninguém, muito menos para os mestres, que os gestores públicos “estufem” o peito para dizerem que estão “gastando” cem por cento (ou próximo ou além disso) da receita do FUNDEB apenas com o pagamento dos salários dos servidores da educação.
Estes gestores estão errados e, talvez, por isso a qualidade do ensino público não tenha “acompanhado” a valorização que o magistério vem tendo desde o advento da Constituição de 1988 e depois, a partir dos anos noventa, com a criação dos fundos (FUNDEF e FUNDEB).
A educação brasileira, como disse há décadas o grande professor Darcy Ribeiro, continua sendo uma calamidade.
A própria Constituição com suas sucessivas emendas comete outro equívoco ao estabelecer um piso de gastos com pessoal não inferior setenta por cento.
Todos, principalmente, os interessados entendem que ali é um ponto de partida e que não há qualquer limite para os gastos com pessoal – como se o “saco” dos recursos públicos não tivesse fundo.
Nunca conheci um “empreendimento” exitoso consumindo setenta por cento da receita na atividade meio.
Como disse de “corpo presente”, não discuto números ou valores, mas, sim, percentuais e proporções, e não me parece “proporcional” que sendo as crianças os destinatários da educação não “sobre” nada dos recursos públicos para elas.
Repito, muito embora reconheçamos a importância de mestres e servidores, a razão de existência da educação é a formação das crianças, isso é o óbvio, tanto assim que os valores dos impostos repassados aos entes federados têm como base a “per capita/aluno”, entretanto, para elas, para investir em melhores condições de ensino, em novos saberes e ferramentas educacionais, não tenhamos recursos.
Isso não me parece justo. Não foi assim que os meus mestres me ensinaram.
Entendo que gestores e educadores precisam buscar o ponto de equilíbrio para compatibilizar as necessidades de reajustes dos profissionais com a necessidade de melhorias nas condições de ensino das crianças e jovens.
Uma população bem formada e qualificada é o principal “motor” do desenvolvimento do país e é o desenvolvimento que nos trará mais recursos para investir em mais valorização do magistério e em melhores condições de ensino das nossas crianças.
Não acredito que esta seja a hora de se buscar os culpados mas, sim, de encontrar soluções.
Os mestres, sempre eles, fazem parte da solução e não do problema, para isso é necessário compreensão e entendimento.
No longo prazo, isso se dará com uma população mais bem formada e qualificada, no curto prazo, com projetos e atitudes na área educacional que tragam mais recursos públicos para educação dos municípios.
Quando trabalhei em Morros (2010/2016), foi dado um grande passo em um projeto de longo prazo, durante anos os mestres aceitaram reajustes menores ou nenhum para que o município, com recursos próprios, pudesse construir seis pólos educacionais na zona rural e já deixasse um terreno comprado para a construção de um grande polo educacional na sede.
A administração eliminou quase uma centena de escolinhas que não ofereciam as mínimas condições de ensino para as crianças.
Um grande exemplo.
Este fim de semana participei brevemente de um seminário, em Brasília, voltado para a melhoria das receitas educacionais dos municípios no curto prazo, são soluções simples e pouco onerosas capazes de melhorar o volume de recursos para os municípios.
É do que precisamos.
Agora mesmo, com o anúncio de como será o ENEM a partir de 2024, novos desafios se apresentam para o ensino público.
Estes desafios só serão vencidos com a participação de todos, professores, servidores, gestores, pais e estudantes.
Não os venceremos uns olhando para os outros ou se enfrentando, como se fossem inimigos, mas, olhando juntos na mesma direção.
Abdon Marinho é advogado.