CRÔNICA DE UMA MORTE NÃO ANUNCIADA.
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- Criado: Quarta, 11 Outubro 2017 01:08
- Escrito por Abdon Marinho
CRÔNICA DE UMA MORTE NÃO ANUNCIADA.
FRANCISCO Edinei Lima Silva, cidadão barracordense ou cordino (conforme o gosto do freguês) com cerca de 40 anos, não imaginava que caminhava para a morte ao sair de casa por volta do meio-dia para comprar um carvãozinho e dar continuidade ao churrasco de domingo.
Envolvido num acidente de trânsito com um motociclista foi preso e jogado no “castigo” da delegacia de polícia daquela urbe.
Aqui começa a tragédia. O tal castigo da delegacia é uma espécie de gaiola localizada nos fundos do prédio sujeito às intempéries climáticas. Quem fica lá tem que aguentar a chuva, o vento, o sol.
Considerando que os meses de agosto, setembro e outubro são os mais quentes do ano em Barra do Corda – e em toda região central do estado –, com a temperatura chegando, facilmente, a 40º, não é difícil concluir que alguém colocado num ambiente destes com o sol a pino, está, verdadeiramente, submetido à infamante prática de tortura.
Segundo, ainda, me informam amigos daquela cidade, familiares apelaram inúmeras vezes às autoridades policiais para que o retirassem daquela situação e estas autoridades fizeram ouvidos moucos.
Apenas, no dia seguinte, quando o rapaz entrou em convulsão, com espumas saindo pela boca, alguém assumiu a responsabilidade de mandar tirá-lo da cela por sua conta e risco, mas já era tarde e o rapaz já chegou morto ao hospital.
Disseram-me que até a mãe do cidadão, fez “apelos de mãe”, tal qual Maria fez por Jesus na Via Crucis, e de nada lhes valeram os apelos ou lágrimas.
Dissseram-me, mas custo a acreditar, que ao prisioneiro/custodiado sequer foi permitido que bebesse um copo d’água.
Alguém, com um senso qualquer de humanidade, consegue imaginar um ser humano preso numa gaiola exposto ao sol a pino, com a temperatura de 40º à sombra sem direito a uma sede d’água? Isso uma tarde inteira, uma noite inteira, até altas horas manhã do dia seguinte.
Acho que vi cenas assim, mas em filmes como “Conan, O Bárbaro” ou naquela série da franquia “Mad Max”, e ainda, naqueles que narram as torturas nos primórdios da civilização.
Causa-me pavor saber que no Maranhão, em pleno século 21, ainda tenhamos que conviver com cidadãos sofrendo esse tipo de inominável tortura, preso em gaiola, no sol quente.
Uma violação constitucional gravíssima.
Está lá, logo no início do capítulo que trata dos direitos e garantias individuais, no artigo 5º: “III — ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;”.
Alguma autoridade deste estado é capaz de explicar como chamariam o recolhimento de um cidadão em uma gaiola, exposto a inclemência do sol da tarde, numa temperatura de quarenta graus, sem direito a uma sede d’água?
Se tiverem outro nome que não seja tortura, degradação, desumanidade, abuso, inominável vergonha, por favor, me ensinem.
Ainda pelas informações que me chegaram, este rapaz era um cidadão de bem, trabalhador, não sendo conhecida qualquer má conduta que o desabonasse. Ainda que não fosse. Como podem agentes públicos, pagos com nossos impostos, pegar um ser humano, jogá-lo numa gaiola nas condições narrada acima e sem direito, sequer, de matar a sede?
Como é possível justificar que alguém envolvido num acidente de trânsito, ainda que com todas as agravantes, seja submetido a este tipo de tortura? Ainda que tivesse matado a mãe, chutado grávidas na praça.
A ninguém, menos, ainda, ao Estado, é dado o direito de torturar.
Evoluímos para o Estado da barbárie? É isso?
O que ocorreu em Barra do Corda, um dos maiores municípios brasileiros, com cerca de 100 mil habitantes, não foi só uma violação a ordem constitucional, aos tratados de direitos humanos, foi, também, uma vergonha para aqueles assumiram o compromisso de não permitir que coisas deste tipo voltassem a ocorrer.
Se criticavam as rebeliões que outrora ocorriam no presídio de Pedrinhas, onde marginais promoviam decapitações, aqui temos algo mais grave. Não foram marginais que mataram o cidadão custodiado, foram os agentes públicos. Foi a mão do Estado.
Ninguém – nem mesmo os que não conhecem qualquer coisa de direito –, ignoram a responsabilidade objetiva do Estado num caso como o ora narrado.
Entretanto, o que me deixa verdadeiramente chocado, é saber que juízes, promotores, delegados, defensores públicos, todos pessoas da lei, profundos conhecedores da Constituição Federal, dos tratados de direitos humanos, tinham e têm conhecimento deste tipo de cela de tortura, que remete aos primórdios da civilização, e nunca se mobilizaram para extirpar tamanha vergonha.
É triste, é aterrador que consigamos conviver com tamanha barbaridade e não nos indignar.
As autoridades estatais não têm apenas o dever de apurar com máximo rigor – e punir com igual severidade os culpados –, têm, ainda, o dever moral de, publicamente, se desculparem com os familiares e amigos da vítima, e com toda a sociedade cordina e do Maranhão.
O mínimo que devem fazer as autoridades – nem falemos na reparação pecuniária devida –, é, publicamente, se desculparem. Tanto o secretário da pasta – que por muito menos deveria ser exonerado –, quanto o senhor governador.
Farão isso? Não creio.
Os fatos ocorridos em Barra do Corda, pela intenção mesquinha de torturar o preso custodiado, chega a ser até mais grave que a desastrada operação policial ocorrida em Balsas, no final de 2015, que vitimou uma moça, e que, embora os policiais tenham sido denunciados por homicídio doloso, não temos notícias, até hoje, de nenhum pedido de desculpas oficial por parte das autoridades estatuais.
Não se desculparem por fatos de tamanha gravidade, não é apenas inaceitável, é uma vergonha para todos os cidadãos de bem.
O mínimo que nos devem as autoridades é se desculparem quando seus agentes cometem tamanhos desatinos.
Este título: “Crônica de uma morte não anunciada”, o coloquei, por não ser comum um cidadão sair de casa apenas com intenção de comprar um carvão, uma carne, uma cerveja, para encerrar o fim de semana, envolver-se num acidente, encontrar o Estado e morrer.
Ele não esperava morrer, queria apenas terminar o domingo com alegria e enfrentar mais uma semana de labor. No meio do caminho, infelizmente, encontrou o Estado. Encontrou a morte. Fim da crônica.
Abdon Marinho é advogado.