RIO DE LÁGRIMAS.
NUNCA uma metáfora fez tanto sentido quanto esta que refere-se ao Rio de Janeiro como um rio de lágrimas.
No horripilante cenário de absurdos que tomou conta da cidade (e do estado) não há quem não lembre de uma tragédia que tenha lhe despertado a atenção com mais intensidade – isso independente de ser o cidadão do próprio estado ou não.
Apenas neste mês, em conversas com amigos, um dizia que lhe chamara atenção fora um assalto “ao vivo” de uma senhora em pleno calçadão, com dezenas transeuntes indiferentes. Um outro disse-me que lhe incomodou as imagens da senhora grávida sendo atropelada, enquanto o marido era esfaqueado, isso tudo na presença de um filho de dez anos de idade.
Estas e tantas outras, são situações que chamam a atenção pelo absurdo, pela gratuidade de violência, pela falta de sentimento de humanidade.
Outrora se dizia que lugar mais seguro que poderia existir para uma pessoa era a barriga da mãe. Esta verdade, quase absoluta, a povoar o imaginário mundial, deixou de fazer sentido quando transportada para o Rio de Janeiro. Afora a criança que não chegou a nascer por conta do atropelamento da mãe, poucos dias antes do ocorrido foi a vez de um bebê ser atingido por “bala perdida” ainda na barriga da mãe.
Este pequeno brasileiro, chamado Arthur, ao menos conseguiu nascer, e recupera-se dos ferimentos, que torcemos, não lhe traga maiores sequelas, como se imaginou logo após o fato.
O pequeno Arthur nasceu e já comprovou o quanto a legislação brasileira é falha na proteção dos seus cidadãos, aliás ele é a prova viva disso, o segundo artigo do Estatuto Civil pátrio estabelece: “Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”
Vejam, antes de Arthur adquirir sua personalidade civil, que só começaria com o seu nascimento, o país, a nação brasileira, já lhe negava seus direitos.
A lei, diferente do prometido não pôs a salvo seus direitos, principalmente, o mais elementar deles: o direito à segurança.
A situação deste bebê talvez seja apenas a mais emblemática, mas a realidade é dramática para todos, sobretudo para os mais frágeis, como crianças, velhos, deficientes, pessoas que não têm como fugir de tantos desrespeito aos seus direitos mais elementares.
Quase todos os dias, milhares de crianças têm revogado o seu direito sagrado à educação. Comuns são os “toques de recolher” decretados por bandidos; não raros são crianças serem retiradas das salas de aula para ficarem amontoadas nos corredores e, assim, fugirem de alguma bala perdida dos rotineiros tiroteios, entre a bandidagem e a Policia ou apenas entre os primeiros por espaços de poder na hierarquia do crime.
Isso, sem contar que já chegam às escolas, muitas vezes, traumatizadas pelos tiroteios ocorridos durante a noite e que lhes roubou o sono.
Tem que ser assim? Só este ano, inúmeras foram as vítimas de “bala perdida”, que, apesar do nome, sempre acaba achando uma vida para dá cabo.
Uma estatística informa a população, já anestesiada pelo medo, que ocorrem na cidade uma média de quinze tiroteios por dia. Talvez a Síria ou o Iraque não registrem tantos.
Não bastassem os tiroteios que, dia e noite, remetem a cidade a uma rotina de guerra civil, há a violência no “mano a mano”, como daquela, e tantas outras moças, que são assaltadas diariamente, à luz do dia, não sendo raros os que perdem a vida em tais ações criminosas, como um garoto de quinze anos que levou um tiro na testa por não ter dado um celular na hora que o bandido pediu ou, dos tantos outros, que perdem a vida ou são esfaqueados, por um cordão, um celular, uma bicicleta.
No interesse do crime as principais vias do estado são “fechados" por bandidos, que fazem arrastões e neles ferem, matam, tiram vidas.
Não restam dúvidas que as autoridades são ou estão incapazes de apresentar soluções, sobretudo, de curto prazo, para tantos problemas.
O governo estadual não consegue, sequer, pagar em dia a folha do pessoal ativo e dos aposentados. Estes últimos, já cansados pelos anos, padecem mais ainda. A humilhação a que são submetidos corta o coração ver suas lágrimas ao não conseguirem honrar com seus compromissos rotineiros, como pagar suas contas de aluguel, água, luz, telefone, comprar os medicamentos de uso contínuo ou mesmo a alimentação.
Situação que não é diferente daquela que vivem os servidores da ativa, com meses de salários atrasados e que tendo de recorrer a caridade alheia para, após horas a fio, receberem uma cesta básica.
E, se falta recursos para pagamento da folha de pessoal e aposentados , é porque desde muito já faltam recursos para outras atividades básicas do estado, como educação, saúde e segurança pública.
Sim, a segurança pública que tem sido negada à população de uma maneira geral e aos mais frágeis em especial, é o primeiro direto. As pessoas precisam, primeiro estarem vivas para usufruírem os demais direitos.
Como aumentar o quantitativo de policiais nas ruas se não podem pagar os salários? Se não possuem recursos para colocar as viaturas para rodar ou dar manutenção as mesmas?
Ora, se não conseguem, num momento tão agudo, exercer uma política de repressão à criminalidade, menos ainda terão condições de implantar políticas públicas que visem o combate ao crime no médio e longo prazo.
No nível de abandono que o Estado do Rio de Janeiro (e sua principal cidade) chegaram, não sei se a solução da intervenção – a única que parece viável no momento –, resolveria.
A sucessão de equívocos políticos no Rio de Janeiro, com governantes despreparados, corruptos ou os dois juntos, não é recente, vem desde os anos setenta, mais não resta dúvidas que nos últimos anos o quadro de descalabro só se agravou e contaminou toda malha estatal.
Se antes tínhamos tumores cancerígenos setorizados, hoje é como se estes estivessem e metástases em todo o corpo.
Dúvidas também não existem de que a corrupção que tomou de conta do estado nos últimos anos é um fator que contribui largamente com o descalabro atual.
Os números da corrupção do governo Sérgio Cabral, aquele que está preso e responde já a mais de uma dúzia de ações penais, é algo assombroso. Ele, e muitos de sua equipe, segundo se sabe agora, tinham mais preocupação em roubar, desviar, receber propinas, que governar o estado, realizar políticas públicas, devolver ao contribuinte seus impostos em forma de serviços comuns.
O dinheiro que afanaram e a energia que gastaram em tais ofícios, fizeram falta e hoje se revela o legado de abandono, daquela que já foi a principal unidade da federação e cartão postal do Brasil.
Abdon Marinho é advogado.