O assassinato das carpas do imperador e outros delitos.
- Detalhes
- Criado: Domingo, 19 Fevereiro 2023 13:22
- Escrito por Abdon Marinho
O ASSASSINATO DAS CARPAS DO IMPERADOR E OUTROS DELITOS.
Por Abdon C. Marinho*.
COMO faço todos os finais de semanas e feriados, mais cedo me ocupei da agradável tarefa de alimentar as carpas que crio no sítio há cerca de seis anos. Alimentar, diz-se por força de expressão, há todo um ritual que começa por chamá-las para a refeição (da manhã ou da tarde), que elas atendem desbarata “carreira”; depois me sento em uma cadeira ou no chão e começo a jogar a ração de um lado e de outro do laguinho e vou “conversando” com elas. O “ritual” dura quase meia hora, às vezes, até mais.
As carpas são peixes inteligentes, capazes de reconhecer as pessoas, quando aparecem alguém estranho perto do lago elas “fogem” para um canto mais distante do lago, mesmo chamando-as e sendo horário da “refeição”, relutam em aparecer; são solidárias. Certa vez, uma delas se machucou – foi dá um salto mais alto e caiu de mal jeito, enfrentando dificuldades para nadar –, e, enquanto as alimentava, um barulho estranho ou a presença de outra pessoa, as fez “correr” para o esconderijo, restando apenas aquela que se encontrava machucada. Não demorou muito e avistei duas delas voltando e se colocando lado a lado com a que estava machucada servindo de “escolta” e a conduzindo para onde estavam as outras.
Já registrei diversos episódios que atestam a inteligência, sensibilidade e até memória “dos meninos”, por exemplo, além de me reconhecerem, já reconhecem e lembram dos meus sobrinhos, embora demorem semanas ou meses entre uma visita e outra.
Vez ou outra algum amigo gaiato pergunta comenta que as minhas carpas já estão no ponto de uma “caldeirada”. Nestas oportunidades pergunto se não pode ir até o porto da Raposa comprar uma pescada amarela.
Cuidadas, alimentadas e mantidas as condições normais de oxigenação da água, as carpas podem viver cerca de cem anos – e até mais.
Estava envolto no “ritual” quando assaltou-me a lembrança do “assassinato” das carpas do Alvorada ocorrido quase que de forma simultânea à “troca de comando” na capital da República.
As “carpas do imperador” ocupavam o espelho d’água do Palácio da Alvorada há quase quarenta anos – o que prova sua longevidade –, e foi um presente do lendário imperador Hirohito, que viveu entre 1901 e 1989 – o 124º imperador japonês reinou de 1926 até sua morte, em 1989, tendo sido a testemunha privilegiada dos principais acontecimentos do século passado –, em reconhecimento e como votos de boa sorte aquela nova etapa política da vida nacional iniciada com a eleição da chapa Tancredo Neves/José Sarney, em 1985.
Guardo com muito apreço os presentes que ganho. Tenho-os como um “pedaço imaterial” daquela pessoa comigo. Quando os olho ou uso algum deles é uma oportunidade para lembrar aquelas pessoas, aquelas circunstâncias em que fui agraciado. Por exemplo, há mais de duas décadas o saudoso amigo, jornalista Walter Rodrigues que deixou esse plano em 2010, presenteou-me com dois jogos de taças para vinho em cristais. Quando aparece uma circunstância especial que exija um vinho para comemorar, peço que peguem na cristaleira as “taças de WR” e digo: “— essas taças foram um presente do querido amigo Walter Rodrigues, tomemos este vinho também em sua homenagem”. Aproveito, ainda, para contar episódios da amizade em comum ou das opiniões que tinha sobre alguns assuntos.
Assim, imagino que as carpas que foram doadas pelo então imperador do Japão há quase quarenta anos ao Brasil têm significado histórico. Um presente para durar por séculos, com toda sua simbologia. Um imperador lendário, de uma nação amiga e que já não se encontra entre nós, deu-nos carpas, naquele momento histórico, um símbolo da força, persistência, bravura e sucesso – tudo précisávamos e precisamos. As carpas trazem ainda uma outra simbologia, elas crescem de acordo com o ambiente em que vivem. Significando que, também, as pessoas podem “crescer” conforme o ambiente em que estão inseridas, não fisicamente, mas nos planos emocional, espiritual e intelectual.
Como criador, imagino o trabalho que foi o transporte de quase uma centena de carpas do Japão para o Brasil, tendo que manter as condições ideais de oxigenação da água durante todo o voo.
Chegando aqui tiveram que adaptar-se as diferenças de temperatura. Ainda assim, por quase quarenta anos sobreviveram a tudo, até mesmo as inconveniências dos turistas.
Só não resistiram às hordas de Huno que ocuparam o poder nos últimos anos.
Contrataram uma empresa “especializada” que achou oportuno esvaziar o espelho d’água e retirar toda “biologia” dos peixes, só falta dizer que para manter o espelho “limpo” resolveram colocar água clorada no mesmo.
Pior mesmo, só a ilação de que a “motivação” para a “limpeza” foi o interesse em coletar as moedas que os turistas lançam por lá.
Não entendi que tipo de limpeza fazia-se necessária no espelho d’água. Aqui, a única coisa que fazemos é manter uma camada de cascalho de rio no fundo do lago, um sistema de filtragem com filtros e com aguapés e a retirada da folhas que caem diariamente. Vez ou outra, quando não chove, colocamos um pouco de água do poço para repor as perdas pela evaporação ou de algum vazamento, e só.
A falta de zelo pelas carpas do imperador Hirohito e toda sua significação apenas revelam a ignorância das autoridades brasileiras. Não conhecem o elementar de história; não sabem o que significa uma troca de presentes; não têm nenhum respeito pelos animais ou pela flora.
Decerto pensaram que o presente do imperador: “eram apenas peixes”.
A mesma falta de zelo que resultou na morte de diversas emas que habitam o mesmo palácio e que têm como função precípua a manutenção do equilíbrio ecológico, com a redução do número de insetos que infestam o ambiente. Os “hunos” não zelam nem pelos animais que zelam por eles.
Os maus-tratos aos animais, para a desgraça dos humanos, não ceifam apenas as carpas do imperador do Japão, as emas que equilibram o ambiente nas residências oficiais, pelo contrário se espalham por todo o país. São as queimadas sem controle, o desmatamento sem trégua, a contaminação dos rios, o lixo jogado nos oceanos …
Aqui mesmo, na ilha do Maranhão, uma cena me entristece diariamente, pelo menos duas vezes ao dia.
Nas três rodovias que pego para chegar ao trabalho todos os dias, me deparo com uma “procissão” de animais vagando sem rumo, sem donos e sem cuidados, passando fome, sede e sendo maltratados. São jumentos de várias idades, são burros, cavalos, são cães, são gatos. Muitos com as patas machucadas, quebradas, com diversas escoriações ou doentes mesmo. É um sofrimento sem fim.
As autoridades estaduais e dos municípios “fingem-se” de cegos ou que não possuem qualquer responsabilidade com o assunto.
O Ministério Público Estadual, que certamente possui algum setor especializado para o tema, parece não se incomodar com o sofrimento dos animais; outras entidades da sociedade civil, a OAB, inclusive, dão o silêncio como respostas.
Um silêncio ensurdecedor a contrastar com a dor e o sofrimento das centenas de animais que vagam sem destino.
Ninguém se move para fazer algo, ninguém se move para cobrar que façam.
Até quando?
Abdon C. Marinho é advogado.