AbdonMarinho - Quando colocam a culpa na vítima.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Quando colo­cam a culpa na vítima.


QUANDO COLO­CAM A CULPA NA VÍTIMA.

Por Abdon Mar­inho.

UMA das sen­tenças mais infamantes que con­hece­mos, na minha opinião, é aquela que diz: “se o estupro é inevitável, relaxa e goza”.

Ao meu sen­tir tal frase rev­ela todo o desprezo pela condição da vítima da vio­lên­cia sex­ual, seja ela mul­her ou homem; ela, como dizer, “coisi­fica” sen­ti­men­tos ou trata-​os como se não exis­tis­sem; car­rega com um total desprezo os trau­mas decor­rentes da vio­lên­cia como a humil­har ainda mais a vítima; uma espé­cie de segundo estupro aos olhos da sociedade.

Ape­sar da crueza da sen­tença referida, ela sem­pre foi vista como “oposição” a outro sen­ti­mento igual­mente vio­lento e dis­sem­i­nado, aquele de que a vítima dev­e­ria resi­s­tir ao estupro e defender a honra com a própria vida ou suicidar-​se longo em seguida como prova de que não conivente ou cúm­plice da vio­lên­cia sofrida.

Algum dia e/​ou noutra opor­tu­nidade deve­mos dis­cor­rer sobre este tema, hoje, entre­tanto, vamos con­tin­uar tratando da emergên­cia mais gri­tante do momento: a guerra san­guinária de Vladimir Putin con­tra a Ucrâ­nia e seu povo, que já levou quase qua­tro mil­hões de refu­gia­dos a deixarem seus lares, seus famil­iares e sua pátria para trás em busca de segu­rança em out­ros países e já con­de­nou noventa por cento dos ucra­ni­anos à extrema pobreza por diver­sas décadas vin­douras.

A guerra, em si, já é um mal abom­inável, torna-​se ainda ter­rível quando acon­tece para sat­is­fazer, como nos casos de estupros, o desejo doen­tio do algoz.

Con­forme já exter­namos em escritos ante­ri­ores, a guerra con­tra a Ucrâ­nia não é um desejo do povo russo, este, aliás, nem sabe que acon­tece uma guerra – pois o gov­erno proibiu que à imprensa e até os cidadãos tratassem a guerra como guerra e até pas­sou a crim­i­nalizar quem assim o fizesse com penas que podem chegar a 15 anos de prisão.

A guerra con­tra a Ucrâ­nia é a guerra de Putin, que não se inco­moda em causar indizível sofri­mento aos mais quarenta mil­hões de ucra­ni­anos e ao seu próprio povo, que sofre não ape­nas pelas baixas dos seus fil­hos nos cam­pos de batal­has – além das muti­lações oca­sion­adas pela guerra e pelo frio diante da duração da infâmia –, mas, tam­bém, os efeitos econômi­cos adver­sos das sanções econômi­cas.

Muito emb­ora já exista um con­senso global con­tra a guerra de Putin e que tal con­senso dev­erá aumen­tar à medida que a vio­lên­cia bruta se tornar a única alter­na­tiva para con­seguir a vitória já inviável nos cam­pos de batal­has, no Brasil – agora bem menos –, existe aquele apoio velado dos prin­ci­pais gru­pos políti­cos (esquerdis­tas e bol­sonar­is­tas) em apoio à crim­i­nosa guerra de Putin.

A esquerdalha movida pelo sen­ti­mento anti­amer­i­cano e pelo saudo­sismo da antiga “mãe soviética”; já os bol­sonar­is­tas pelo sen­ti­mento de alin­hamento ao “estado autoritário”, muito bem rep­re­sen­tado pelo psi­co­pata que ocupa o Krem­lin e que, de uma hora pra outra, tornou-​se “amigo de infân­cia” do atual pres­i­dente do Brasil, os uniu na causa infamante.

Assim, exceto por algu­mas questões pon­tu­ais, assis­ti­mos arautos da esquerda brasileira e do bol­sonar­ismo defend­endo a inde­fen­sável guerra de Putin, com argu­men­tos que vão desde for­mu­lações históri­cas de geopolítica mundial ao fato de, suposta­mente, o crim­i­noso do Krem­lin haver defen­dido a sobera­nia brasileira sobre a Amazô­nia.

Assim, exceto por uma ou outra man­i­fes­tação pro­to­co­lar da diplo­ma­cia brasileira, a impressão que temos é que o Brasil e, pior, o povo brasileiro, encontra-​se “alin­hado” à política crim­i­nosa e expan­sion­ista do líder russo.

A mais cruel guerra da atu­al­i­dade, com cidades inteiras sendo com­ple­ta­mente arrasadas, com mil­hares já pere­cendo sob a ameaça da fome, da sede e do frio, para os brasileiros “poli­ti­za­dos” é como se isso não exis­tisse ou como se estivesse acon­te­cendo em Marte ou como se “dessem de ombros” e fin­gis­sem que não têm nada com isso.

Causa-​me espe­cial sur­presa e incô­modo que líderes brasileiros, capazes de agi­tar mul­ti­dões para suas pau­tas, mesmo as mais exdrúx­u­las, não ten­ham nada a dizer sobre uma guerra abso­lu­ta­mente injusta, cruel e desumana ou que não sejam capazes de con­cla­mar seus lid­er­a­dos em protestos con­tra a guerra?

A per­gunta que me faço é: os esquerdis­tas e os bol­sonar­is­tas são favoráveis a esta guerra? Acham-​na justa, legí­tima e limpa? É por isso que não dizem nada, ape­sar de ficarem o dia inteiro nas redes soci­ais falando bobagens?

Mas, se não podem falar con­tra a guerra por inter­esses que os aprox­i­mam do crime, por que não se man­i­fes­tam pela paz? Por que não se movi­men­tam ao menos para faz­erem o céle­bre “dis­curso de miss” a favor da paz mundial?

A guerra de Putin já dura mais um mês, emb­ora pareça pouco tempo, para os que estão sofrendo sob os bom­bardeios inclementes é uma eternidade, sem con­tar que este tempo já foi mais que sufi­ciente para a destru­ição de mil­hões de vidas – não falo ape­nas das mortes físi­cas, psi­cológ­i­cas, falo, sobre­tudo, dos mil­hões que de uma hora pra outra perderam suas refer­ên­cias.

Tem sido este silên­cio cúm­plice dos “líderes” brasileiros que fez lem­brar da infamante frase citada no iní­cio do texto.

Estes líderes, por sim­pa­tia ao car­ni­ceiro de Moscou ou serem escravos de suas próprias covar­dias, tudo que que­riam era que a Ucrâ­nia e os ucra­ni­anos não resis­tis­sem brava­mente con­tra a vio­lação de sua pátria.

Como os gen­erais rus­sos, imag­i­naram que ao som dos primeiros tiros ou das primeiras bom­bas, os ucra­ni­anos se entre­gassem sem resistên­cia ao inva­sor ou que “relax­as­sem e gozassem” ante a vio­lên­cia do ato infame.

Os arautos do esquerdismo, petismo, lulismo e do bol­sonar­ismo apos­taram e defend­eram isso, muitos, inclu­sive, através dos seus ideól­o­gos chegaram a cul­par a Ucrâ­nia e o seu pres­i­dente pela guerra, pelo assas­si­nato das pes­soas.

Segundo eles, sendo inviável a vitória ucra­ni­ana, o que o gov­erno daquele país dev­e­ria fazer era ceder aos dese­jos do crim­i­noso “para evi­tar o sofri­mento do povo”.

Bem ao gos­tos dos covardes mais canal­has utilizam-​se de um falso altruísmo para jus­ti­fi­carem o próprio com­por­ta­mento pusilân­ime.

O que é isso senão a colo­cação em prática da infamante frase com a qual ini­ci­amos o texto?

Não vi só um ou só de um lado, com um pen­sa­mento mais ou menos elab­o­rado, cul­parem a Ucrâ­nia pela guerra que estava/​está sendo vítima. Todos firmes na ideia de que era aceitável o estupro de uma pátria inde­pen­dente e livre.

Um mês já se pas­sou.

A guerra é a triste real­i­dade a mas­sacrar um povo que não tem se deix­ado vencer ou dom­i­nar.

Os Esta­dos livres do mundo e seus povos se uni­ram e com­preen­deram quem é o agres­sor e o agre­dido; quem é a vítima e quem é o algoz e protes­tam quase diari­a­mente con­tra a violência.

Mesmo na Rús­sia sob sev­era repressão, mil­hares de rus­sos já foram ou estão pre­sos por dis­cor­darem da guerra mesmo sabendo que poderão ser con­de­na­dos a penas duras.

São estes gov­er­nos – e seus cidadãos –, os respon­sáveis pelo fim da guerra quando ela chegar.

Serão os chama­dos fil­hos de Deus, con­forme prometido por Jesus Cristo no Ser­mão da Mon­tanha.

Como disse alhures, por aqui, ficamos acor­renta­dos à covar­dia ou alin­hados ao expan­sion­ismo do “estuprador”, como se uma guerra injusta não estivesse ocor­rendo con­tra um povo inocente, vítima e não cul­pado do seu infortúnio.

É a mesma covar­dia, o mesmo silên­cio cúm­plice que os faz calar diante da con­de­nação de dezenas de cubanos a penas altís­si­mas pelo “crime” de protes­tar con­tra a ditadura na ilha-​prisão de Cuba ou que os faz calar diante das con­de­nações bison­has de dis­si­dentes rus­sos.

É o Brasil, mais uma vez, ao lado dos crim­i­nosos e não das vítimas.

É o Brasil, mais uma vez, colocando-​se no lado errado da história.

Abdon Mar­inho é advo­gado.