AbdonMarinho - A verdade que alvoroça a caserna
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sexta-​feira, 22 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

A ver­dade que alvoroça a caserna


A VER­DADE QUE ALVOROÇA A CASERNA.

Por Abdon Marinho.

ALGU­MAS sem­anas, com o alas­tra­mento da pan­demia do novo coro­n­avírus e aumento do número de mor­tos, escrevi um texto no qual fazia a per­gunta essen­cial no seu título: “Quem her­dará os mor­tos da pandemia?”.

Nos últi­mos dias o país foi tomado por uma imensa polêmica envol­vendo uma fala do min­istro Gilmar Mendes, do Supremo Tri­bunal Fed­eral — STF, que crit­i­cava a con­dução do gov­erno no con­t­role da pan­demia e dizia, entre out­ras coisas, que as Forças Armadas estariam se asso­ciando a um genocí­dio.

Foi o que bas­tou para o “mundo” vir abaixo.

Os coman­dantes das Forças Armadas, através do Min­istério da Defesa, emi­ti­ram notas de protestos, mil­itares far­da­dos e de pija­mas deram declar­ações de repú­dio, e, até entraram com uma rep­re­sen­tação con­tra min­istro na Procuradoria-​Geral da República, para que esta ado­tasse as medi­das “necessárias” con­tra o min­istro por suas colo­cações que, suposta­mente, feririam a Lei de Segu­rança Nacional, a famosa e temida LSN.

O próprio min­istro, diante da reper­cussão da fala, veio com expli­cações, fazendo uma espé­cie de “mea culpa”, dizendo que, emb­ora tenha fal­ado através da rede mundial de com­puta­dores – uma live –, suas colo­cações se diri­giam ao ambi­ente acadêmico e, pelo con­trário, tin­ham a intenção de preser­vação das Forças Armadas, exces­si­va­mente envolvi­das com o gov­erno do sen­hor Bolsonaro.

Desde que resolvi escr­ever min­has impressões sobre os fatos que vive­mos – e, ape­sar de recente já são quase mil tex­tos –, sem­pre tive um posi­ciona­mento crítico a respeito dos min­istros falas­trões da nossa Corte Suprema.

Acho que não com­porta a jul­gadores – ainda que em pre­juízo do livre exer­cí­cio da cidada­nia –, emi­tirem opiniões fora dos autos que jul­gam. É o ônus que têm de pagar pela escolha profis­sional que fiz­eram.

O posi­ciona­mento público ou político tem a única ser­ven­tia de enfraque­cer as insti­tu­ições que par­tic­i­pam e a própria democracia.

Dito isso, reafirmo a posição – sem­pre exter­nada –, de con­trariedade à fala do min­istro e de qual­quer outro jul­gador que se achar no dire­ito de dar “pitaco” em tudo que acon­tece no país, inclu­sive, sobre os assun­tos que, ao menos em tese, poderá julgar.

Entre­tanto, devo deixar claro, tam­bém, que a crítica que faço à fala do min­istro – e não a fiz antes por estar pre­ocu­pado com a saúde de um dos meus irmãos que esteve inter­nado em unidade de ter­apia inten­siva por conta da covid-​19 –, faço pela pes­soa que se man­i­festou, não pelo conteúdo.

Não fosse o autor das colo­cações, um min­istro da Suprema Corte, não teria prob­lema ou dúvida alguma em subscrevê-​las.

Exceto por uma ou outra ressalva, os ques­tion­a­men­tos estão per­feitos e dev­e­riam, ao invés de atrair críti­cas, atrair a reflexão do gov­erno fed­eral e das próprias Forças Armadas.

O que está ocor­rendo no Brasil, no que se ref­ere ao com­bate à pan­demia do novo coro­n­avírus é algo gravís­simo. Nunca na história do país – pelo menos na história recente –, nos deparamos com uma tragé­dia de tamanha mag­ni­tude.

Enquanto escrevo este texto, nesta tarde de domingo, o número de óbitos por conta da pan­demia se aprox­ima – se é que já não ultra­pas­sou –, a casa dos oitenta mil mor­tos, sem que o gov­erno do sen­hor Bol­sonaro tenha uma posição clara e cien­tifi­ca­mente aceita de como deve se com­bater esse vírus mortal.

Difi­cil­mente, para nossa tris­teza, até o final desta tragé­dia, alguma família brasileira escape do sofri­mento cau­sado pela dor da perda de um ente ou um amigo, sem que o gov­erno demon­stre qual­quer sol­i­dariedade, empa­tia ou faça o seu papel de bus­car a mel­hor alter­na­tiva visando sal­var o maior número pos­sível de pes­soas.

Em sen­tido inverso, temos é o gov­er­nante, dia após dia, se envol­vendo em polêmi­cas empíri­cas e/​ou teses exdrúx­u­las que em nada tem aju­dado no com­bate à pan­demia.

Outro erro grave é que esta­mos há mais de sessenta dias sem um min­istro tit­u­lar na pasta da saúde, alguém respeitado pela comu­nidade cien­tí­fica nacional e inter­na­cional, com con­hec­i­mento do assunto ou que, pelo menos, não seja ques­tion­ado pelo descon­hec­i­mento do tema.

A situ­ação torna-​se ainda mais grave – infini­ta­mente mais grave –, quando ao invés de cien­tis­tas, temos o Min­istério da Saúde “tomado” por mil­itares, tanto da reserva quanto da ativa.

Noutras palavras, o min­istro Gilmar Mendes acerta quando pon­tua que esta inde­v­ida “usurpação” por parte dos mil­itares de um min­istério civil e que, por sua natureza, dev­e­ria ser con­duzido por cien­tis­tas, ainda mais durante uma pan­demia, coloca as Forças Armadas como par­ticipes de um genocí­dio.

O alvoroço na caserna, a sus­ci­tar tan­tos protestos, foi cau­sado prin­ci­pal­mente pelo termo genocí­dio uti­lizado pelo min­istro falas­trão.

Com relação a isso (ao termo genocí­dio uti­lizado), menos do que crítica, dev­e­ria ser motivo de agradec­i­mento e de uma reflexão visando uma mudança de rumos no com­bate à pan­demia.

Ora, se o gov­erno fed­eral, ainda que através de nar­ra­ti­vas mais diver­sas, possa com­par­til­har a culpa pela imen­sidão de mor­tos cau­sada pela pan­demia, com gov­er­nadores e prefeitos, o mesmo mesmo não poderá fazê-​lo naquilo que é sua respon­s­abil­i­dade exclu­siva, que é a pro­teção dos povos indí­ge­nas.

Em relação a estes povos, é o gov­erno fed­eral, através de suas fun­dações e órgãos, o respon­sável exclu­sivo, e sabe­mos que ele não tem se desin­cumbido desta mis­são, seja por não impedir a invasão das reser­vas e aldeias por garimpeiros e out­ros explo­radores das flo­restas, provo­cando a con­t­a­m­i­nação daque­las comu­nidades, seja por não dis­pen­sar um trata­mento médico ade­quado aos indí­ge­nas que estão ou pos­sam vir a ser infec­ta­dos pelo vírus.

Con­siderando que muitos destes povos já estão restri­tos a um número reduzi­dos de mem­bros, caso ven­ham a pere­cer toda uma etnia estare­mos, sim, diante de um genocí­dio.

Vamos torcer para que isso não acon­teça, mas as políti­cas gov­er­na­men­tais, tendo à frente o Min­istério da Saúde – e o mundo inteiro está assistindo –, con­duz para que o pior acon­teça.

Quando tudo isso pas­sar, caso o pior acon­teça, o com­por­ta­mento de cada gov­erno será avali­ado, e caso, infe­liz­mente, seja com­pro­vado o genocí­dio de povos indí­ge­nas, o gov­erno brasileiro e seus agentes fatal­mente dev­erão respon­der per­ante as Cortes Penais Inter­na­cionais –, isso, se não respon­derem, tam­bém, per­ante a Justiça brasileira.

A forma de com­bater a pan­demia foi – e está sendo –, uma posição política de cada gov­erno.

Quem agiu certo e no tempo ade­quado, colhe os mel­hores resul­ta­dos. Os que, pelo con­trário, se deixaram cegar pelos seus próprios con­ceitos, amargam os piores resul­ta­dos e algum dia serão chama­dos para rece­ber a suas her­anças.

As Forças Armadas do Brasil, que têm um papel bem definido na Con­sti­tu­ição Fed­eral, ao aceitarem sair da sua mis­são para exercerem car­gos – muitos ainda na ativa –, em um gov­erno civil, absur­da­mente ide­ol­o­gizado, dev­e­ria saber o risco que cor­re­ria – e que está cor­rendo, inclu­sive, o de perder o prestí­gio que tanto se esforçou para con­quis­tar nas últi­mas décadas.

Os mais jovens talvez não lem­brem, mas, quando a pop­u­lação com­preen­deu que o movi­mento de 1964 implan­tara uma ditadura no país, de lá até 1985, ou seja, por vinte e um anos, as Forças Armadas pas­saram a ser vis­tas como as Forças Armadas da ditadura. Com o retorno do poder aos civis a par­tir de 1985, pas­saram a ser vis­tas com descon­fi­ança pela pop­u­lação, tanto assim que temiam alguma espé­cie de revan­chismo por parte dos gov­er­nos civis.

Os anos do pós ditadura têm sido para as Forças Armadas se recom­porem com a sociedade brasileira.

Somente em tem­pos recentes pas­saram a ser vis­tas como essen­ci­ais ao país e a con­quis­tar a sim­pa­tia da pop­u­lação e é isso que se arriscam a perder.

As diver­sas ten­ta­ti­vas do atual gestão – calçado na tol­erân­cia obse­quiosa de alguns mil­itares e no saudo­sismo de alguns gen­erais de pijama –, de “mil­i­ta­rizar” o gov­erno ou de se sus­ten­tar usando as Forças Armadas, tem o efeito deletério de dividir a nação e devolver àquela insti­tu­ição todo o desprestí­gio e descon­fi­ança dos anos de ditadura e das primeiras décadas pós o régime de exceção.

As Forças Armadas não pre­cisam ficar alvoroçadas com as colo­cações “inde­v­i­das” do min­istro Gilmar Mendes, pre­cisam, sim, com­preen­derem o seu papel con­sti­tu­cional numa sociedade democrática, mantendo-​se equidis­tantes de con­tendas políti­cas ou de par­tic­i­pação de estraté­gias toscas de gov­erno, sob pena de perderem não ape­nas o respeito den­tro da nação, mas, tam­bém, no âmbito inter­na­cional, e, inclu­sive, respon­derem per­ante as cortes inter­na­cionais na even­tu­al­i­dade de se com­pro­var genocí­dio con­tra os povos indí­ge­nas do Brasil.

Devem refle­tir sobre isso e enten­derem que fiz­eram e fazem muito mal a si mes­mas e à nação, deixarem uma posição de Estado para se posi­cionarem politi­ca­mente a favor de uma facção política.

Demor­aram muito para con­quis­tar um respeito que têm colo­cado em risco ao longo do último ano e meio. Não tar­darão a ouvir o velho bor­dão do tempo da ditadura: mil­itares, de volta aos quar­téis!

Abdon Mar­inho é advo­gado.