A DESIGUALDADE DO PAÍS COMEÇA NA JUSTIÇA.
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- Criado: Quarta, 04 Julho 2018 11:04
- Escrito por Abdon Marinho
A DESIGUALDADE DO PAÍS COMEÇA NA JUSTIÇA.
Por Abdon Marinho.
UMA piadinha fez sucesso, por estes dias, nas redes sociais. O chiste dizia: Depois o STF matar o Brasil fugirá com o advogado? Não achei lá muita graça, até porque, quando o STF “matar” o Brasil, se fugir, será com quem encomendou o “assassinato”, será com o “patrão” e os advogados estamos bem longe de ostentar tais condições, somos, também, vítimas.
O chiste, entretanto, serviu para uma breve reflexão.
A primeira missão do STF é guardar a Constituição da República. É o que se depreende da leitura dos artigo 102: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição…”.
Pois bem, a Constituição “guardada” pelo nosso STF, estabelece logo no artigo 5º. um princípio que é basilar e de fácil compreensão, acredito, até que dispensável constar na Carta, o princípio da igualdade.
Consta lá: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade…”.
Desnecessário infirmar que sendo a igualdade entre todos um princípio básico e constando tal princípio na Constituição Federal “guardada” pelo Supremo Tribunal Federal, o derradeiro lugar onde iríamos imaginar que tal princípio não seria observado seria no … STF. Certo?
Mas é isso que assistimos no nosso dia a dia? Os senhores ministros guardiões da Constituição, naquela que é a última cidadela da democracia, têm tratado os cidadãos, aqueles que pagam impostos de forma igualitária?
Não precisamos ir muito longe para saber que não.
Outro dia tomei conhecimento de uma entrevista de um dos seus ministros, Marco Aurélio Mello, a uma televisão portuguesa, onde o mesmo, do alto de sua sapiência jurídica cunhou: “a prisão de Lula viola a Constituição».
O curioso na fala de sua excelência é a particularização da questão, a sua individualização, “a prisão de Lula”. Ainda mais quando a colocação vem de um ministro que, dia sim e no outro também, jacta-se ao dizer que para ele processo não tem capa.
É diante de assertiva tão contundente que cabe questionar: quantos são os milhares de brasileiros que na mesma condição do ex-presidente estão cumprindo pena após condenação em segunda instância depois que o STF decidir, por seu órgão máximo, que não fere a Constituição? Vou além, quantos milhares de brasileiros estão presos provisoriamente sem ter tido qualquer condenação judicial? Sabemos que uma grande parcela.
Sabemos, também, que muitos estão estão encarcerados sem qualquer formação de culpa. E, ainda que muitos, os mais humildes, desassistidos, não têm condições, sequer, de constituir um advogado, ficando seus processos na dependência das defensorias públicas.
Quantos destes conseguem que seus processos ultrapassem as instâncias ordinárias?
O ilustre ministro assevera: “Imagina-se no campo da liberdade a execução provisória? Ninguém devolve ao cidadão a liberdade perdida”.
Ao meu sentir nada é mais importante que a liberdade, que, para mim, tem precedência até sobre a própria vida. Entretanto, enquanto o senhor Lula cumpre a pena a que condenado por duas instâncias, numa sala privativa da Polícia Federal, podendo receber amigos, aliados políticos, com acesso a meios de comunicação, podendo, pasmem, ser comentarista da Copa do mundo e agir como se fosse candidato à presidência da República, muitos outros, em condições mais favoráveis, com delitos mais leves e, até mesmo, sem terem sido julgadas, amargam nas masmorras medievais do sistema prisional brasileiro.
Se o ministro acha escandaloso o cumprimento da pena após segunda instância o que tem a dizer de tantos outros brasileiros que estão presos, muitos até, sem qualquer condenação? E enfrentando as condições mais abjetas.
Se vale para um, tem que valer para todos.
Se querem soltar o senhor Lula e tantos outros condenados, criminosos do “colarinho branco” que afanaram os cofres da nação têm que mandar soltar todos os que se encontram em idêntica situação, sem olhar para capa do processo.
É bem provável que o traficante, o assassino, o estuprador, o pedófilo, etc., até que o STF aprecie seu último recurso, seja inocente. Não é mesmo?
Se todos são iguais perante a lei, segundo a Constituição “guardada” por suas excelências, nada mais justo que garantir a todos o mesmo tratamento.
Vejam, a decisão sobre o cumprimento antecipado da pena, foi adotada pelo guardiões da Constituição – é verdade que por maioria apertada –, desde 2016. De lá para cá, milhares de brasileiros foram presos para iniciar o cumprimento da pena. Por que, só agora, quando tal medida passou a alcançar o “andar de cima” virou um escândalo?
Um dos ministros, árduo defensor da constitucionalidade da medida, Gilmar Mendes, disse por ocasião daquele julgamento, que a partir daquela decisão o Brasil passava a integrar o mundo civilizado. Agora diz que voltamos a Idade da Pedra.
O que aconteceu neste curto espaço de tempo para a posição do ministro dar uma quinada de 180º? Talvez esteja errado, mas só consigo enxergar de novo a mudança dos destinatários da medida.
Nestes últimos dias, a Segunda Turma do STF, num esforço concentrado pelo “garantismo” determinou a soltura de diversos condenados em segunda instância, além de outras medidas tendentes a aumentar a certeza da impunidade no país. Mandou soltar, absolveu, trancou inquéritos, arquivou denúncias. Tudo dentro da mais perfeita ordem e fundamentada na Constituição que guardam.
O caso mais emblemático, acredito, tenha sido o do ex-ministro José Dirceu condenado a mais de trinta anos em primeira e segunda instâncias.
Suas excelências, capitaneados pelo ministro Dias Toffoli – a quem o bom senso recomendaria a suspeição, tendo em vista que foi subordinado do condenado, além de ter sido advogado do seu partido por muitos anos –, determinaram a sua soltura “de ofício” tendo em vista que um dos ministros pedira vista dos autos principais.
Diante disso, o ministro, que daqui a pouco será presidente do STF, “impetrou” em favor do condenado que outrora fora seu superior hierárquico, uma ordem de soltura, sem maiores delongas, sem esperar o processo voltar do pedido de vistas, sob o argumento da abusividade da prisão.
Como se fosse possível haver reversão de uma pena de trinta anos, confirmada por duas instâncias. No dia que isso ocorrer, talvez seja hora de “fechar” o Judiciário, pois algo de muito grave estará acontecendo.
Não satisfeito o ministro relator, futuro presidente, revogou uma determinação do juiz de piso, também “de ofício”, que determinava ao condenado a colocação de tornozeleira eletrônica, em face do risco de fuga. Sua excelência proibiu tal medida consignando que a iniciativa tratar-se-ia de uma afronta à decisão do STF que concedera ao condenado em duas instâncias, ex-superior do ministro, a liberdade plena.
Diante de tudo isso, poder-se-ia dizer que sua excelência e demais ministros, apenas estavam – e estão –, preocupados com o cumprimento da Constituição e a garantia da mais lídima Justiça, que a mesma devoção e cuidado se aplica a todos os demais cidadãos brasileiros.
Poder-se-ia idealizar isso. Mas, eis que chega ao nosso conhecimento que o ministro tão preocupado com as garantias e o império da Justiça não demonstrou a mesma compaixão com um cidadão que teve negado seguimento a um “habeas corpus” por que roubara – e fora condenado por isso –, uma bermuda no valor de R$ 10,00 (dez reais), isso, apesar do Ministério Público, titular da Ação Penal, ter opinado pela concessão da ordem.
Quando soube de tal fato, principalmente pela proximidade dos acontecimentos que culminaram com a soltura de tantos corruptos que subtraíram milhões dos contribuintes, recusei-me a acreditar, mas encontrei o HC 143.921 de Minas Gerais, com a história.
Ora, primeiro que é um absurdo que tal demanda percorra todas as instâncias da Justiça sem ninguém encontrar uma motivação para soltar o cidadão. Segundo, que, mesmo com alguma formalidade impedindo o conhecimento e/ou seguimento do habeas corpus, o ministro, como fez com o senhor José Dirceu, poderia “de ofício” conceder-lhe a liberdade.
No caso morador de rua, ladrão de uma bermuda, sua excelência entendeu aplicar a jurisprudência da Corte que aplicação do princípio da insignificância nos casos de reincidência. No caso de Dirceu entendeu indevida o entendimento do mesmo STF que diz ser lícita o cumprimento da pena a partir da condenação em segunda instância.
Quer dizer que é lícito mandar soltar o senhor Dirceu condenado em duas instâncias por ter roubado milhões dos cidadãos, mais incorreto soltar o cidadão que roubou uma bermuda de dez reais e que depois devolvera?
Este é o modelo de Justiça que legaremos a posteridade?
Bem certo estava aquele salteador que uma vez afrontou Alexandre Magno, conforme nos narra Vieira: – basta senhor! Que eu, porque roubo em uma barca sou ladrão e vós que roubais em armada sois imperador?
Assistimos a isso na Justiça brasileira: os que muito roubam e têm o azar de serem condenados (o que já é raro) têm todas as honras e preocupações dos integrantes das mais elevadas Cortes, já os que roubam tostões, amargam nos porões infecto dos cárceres.
Abdon Marinho é advogado.