PRIVILÉGIOS E LITURGIAS.
Tinha poucos anos no ofício de advogado quando fui contratado para assessorar uma administração municipal um pouco distante do interior. Um dia fui alcançado por um importante secretario que reclamava minha presença com urgência na localidade. Deveria me dirigir ao aeroporto logo cedo que avião bimotor alugado estaria a minha espera. Já estranhei a necessidade de ir de avião, o município embora distante, se alcançava em, no máximo, 4 horas. Mas segui a orientação e as seis da manhã já estava disfarçando meu medo de voar e embarcando na aeronave.
A surpresa maior me deparei quando cheguei. No aeroporto, esperava-me um séquito, formado por alguns assessores e diversas outras pessoas em motocicletas, guarda-municipal, etc. Peguei o carro e pus-me a seguir o cortejo com uma infinidade de batedores à frente.
Como ardoroso fã de cinema, via tudo como em um filme rodado numa das infinitas ditaduras africanas: aquelas dezenas de batedores abrindo caminho por ruas empoeiradas com suas casas de barro e cobertas de palhas. Era a própria África. E eu, no papel do tiranete de plantão. Devo acrescentar que as motos dos batedores iam buzinando, abrindo caminho para mim e para os outros carros do cortejo. Era uma cena rocambolesca.
Chegando ao meu destino, uma casa de campo um pouco retirada do centro da cidade, indaguei à importante autoridade o que significava aquilo tudo, qual a razão de tanto aparato. Respondeu-me mais ou menos assim: — Dr. Abdon, trata-se de uma disputa com a Câmara Municipal, temos que mostrar que o senhor é uma importante autoridade das leis para os vereadores e para a comunidade e que veio aqui para resolver o assunto. Fiquei sem palavras.
Lembrava-me deste bizarro episódio da minha vida, ao ver a repercussão de uma nota sobre o governador do estado onde o mesmo era criticado por andar ao lado do motorista no veículo oficial e não no banco de trás. Segundo a crítica, sua excelência, estaria desrespeitando a liturgia do cargo.
Como vemos, em todas as sociedades atrasadas e com o ranço dos privilégios e liturgias, o debate acontece por esse viés e não por um motivo sério.
A ninguém socorre pensar que a inconveniência do governador se deslocar ao lado do motorista oficial coloca em risco sua segurança pessoal o que é ruim para a sociedade. Quaisquer manual de segurança, pelo menos os me lembro, dos filme que assisti, recomendam que a autoridade deva sentar-se atrás em posição diagonal à do condutor do veículo, sentando-se o segurança pessoal ao lado do motorista. Informam os mesmos manuais, que em caso de atentado, o alvo é primeiro o motorista, o que coloca em risco a segurança que quem vem atrás dele ou do lado. Estando a autoridade em posição diagonal, corre menos risco.
A mesma coisa acontece em relação ao governador não morar na ala residencial do palácio do governo. Neste caso caminho pelo mesmo sentido, se existe uma ala residencial disponível e se já parte da rotina sua segurança, não faz sentido que se desloque policiais para efetuar a segurança do governador num edifício ou casa. Sem contar que, se há um desconforto para os agentes de segurança, há o incômodo para a vizinhança. Lembro que no auge dos protestos contra os governos no ano de 2013, a população carioca sitiou o governador Sérgio Cabral no edifício em que morava. Dia e noite se ouviam palavras de ordem. Tudo bem, é bem possível que merecesse ficar sitiado e a ouvir incontáveis impropérios, mas os seus vizinhos não. Não tinham nada com a \"cor da chita\". Eram cidadãos comuns, pagadores de impostos, como os que protestavam.
Algo semelhante se deu, não faz muito tempo, com atos de protestos contra o prefeito da capital promovidos por professores da rede municipal de ensino. O protesto era contra o prefeito, a poluição sonora o era compartilhada por todos seus vizinhos, muitos dos quais, nem nele depositaram o voto.
A fora essas ressalvas quando à segurança do governador – uma vez que na sua posição contrariará muitos interesses – ou possíveis incômodos aos vizinhos, entendo que já passa da hora de se pôr fim a essa cultura de privilégios e liturgias.
Tais privilégios e liturgias são os exemplos mais claros do atraso africano em que foi inserido o Maranhão nas últimas décadas.
Aqui o poder é para ser ostentado, serve para gerar privilégios a meia dúzia de apaniguados, que usufruem de todos benesses do Estado em detrimento de mérito; serve para enricar umas poucas famílias que usam o poder como parte do seu patrimônio pessoal.
O atraso é tamanho que o povo acha normal que os governantes se sirvam do patrimônio público como se o mesmo fosse extensão do seu próprio patrimônio, que fiquem ricos quando ocupem cargos públicos, embora todas saibam que o salário não é essas coisas, que riqueza vem mesmo do alcance, da propina.
Olhando a minha vida em retrospectiva me recordo das inúmeras vezes que ouvi um ou outro eleitor dizer que não votava em ninguém mais pobre que ele; que o prefeito ou deputado que não roubavam eram \"bestas\", que nada tinha demais se apropriarem dos recursos públicos deste que atendessem suas demandas por um emprego para um parente, lhe aviasse uma receita médica, lhe desse uma par de sandálias ou lhe pagasse uma dose cachaça.
Isso precisa mudar.
O governador merecerá aplausos caso consiga romper com esse tipo de cultura. Romper com esses privilégios e liturgias que só servem para legitimar o assalto aos cofres públicos. Precisamos romper com esse atraso que só aproxima o estado das nações mais atrasadas do mundo.
O Maranhão precisa é se aproximar das democracias mais avançadas, onde as autoridades não são tidas por deuses, que dirigem seus próprios veículos, pagam suas próprias contas, levam uma vida normal e muitos até vão para o trabalho de ônibus, metrô ou bicicleta.
Ainda estamos longe de alcançar o nível de segurança que simbolize esse desenvolvimento, mas devemos buscar é isso e não construir uma cultura de privilégios que nos faça rivalizar com os países mais atrasados tais como as ditaduras africanas.
Ainda no tema, outro dia contaram-em o seguinte fato:
O Papa Francisco precisou vir ao Brasil as pressas, encontro urgente e sigiloso com um arcebispo que estava em Aparecida impossibilitado de se locomover.
As autoridades eclesiásticas mandaram um motorista apanhá-lo, um negrão de quase dois metros de altura.
O papa sentou-se a seu lado e disse: – pise fundo pois tenho que chegar lá e voltar rápido.
O motorista, todo acanhado foi logo respondendo: – Olhe seu papa, eu não posso correr muito, pois os guardas tem ordens de multar todo mundo.
O papa já impaciente mandou parar e tomou a direção e, apressado, pisou fundo.
Lá na frente, só ouviu o apito do guarda mandando parar.
Encostou e quando o guarda chegou perto levou um susto. Imediatamente ligou para o chefe: – Comandante, temos um problema aqui.
O chefe já foi logo dizendo: – Já sei, alguma autoridade, metida a engraçadinho correndo demais, algum vereador, deputado? Indagou.
O guarda respondeu: – mais que isso.
O chefe: – senador, governador?
O guarda: – mais que isso chefe.
O chefe: – Algum diplomata, o Obama, a presidente?
O guarda encerrou logo o assunto: – olhe chefe, não sei quem é a autoridade, mas o motorista do “homi\" é o papa.
Com os excessos contidos na piada, nada há demais nas autoridades levarem uma vida comum, sem privilégios ou ostentações e responderem por seus atos, como qualquer mortal.
Abdon Marinho é advogado.