UMA DITADURA QUE SE DESINTEGRA.
– TENHO fome. Vai me matar porque tenho fome?
A expressão é de um cidadão enfrentado a policial nas ruas de Caracas. A imagem por um momento me transportou aos eventos de quase trinta anos ocorridos na China no que ficou conhecido como "O massacre da Praça da Paz Celestial", onde um cidadão enfrentava uma coluna de tanques, fazendo-os parar.
A cena do cidadão faminto enfrentando a policia me pareceu mais dolorida que aquela ocorrida na China, e que ganhou o mundo, até porque, segundada por imagens igualmente fortes: uma mulher come uma melancia recolhida no lixo de um mercado; uma moça se abaixa no mesmo lixo apanha uma fruta e sai rápido do local – como a envergonhar-se do que acabara de fazer.
Colhi estas dolorosas informações de um documentário sobre a Venezuela revelando a grave situação econômica, politica e humanitária que atravessa o vizinho do norte.
Revela também o tamanho do fracasso da experiência bolivariana naquele país – e em qualquer outro.
A crise na Venezuela – que por razões óbvias pouco se fala por aqui: os antigos aliados por não terem o que dizer diante do desastre e os opositores por nunca darem a devida importância aos assuntos sul-americanos –, há muito deixou de ser uma crise meramente econômica, politica ou social. A natureza da crise é humanitária. As pessoas estão morrendo por falta de assistência, estão passando fome, estão sem receber remédios básicos ou essenciais para suas enfermidades, estão sem conseguir sustentarem a si e aos seus familiares.
O Brasil, sobretudo, os estados do Norte e principalmente Roraima, já sente os efeitos do descalabro no país vizinho pois milhares de migrantes já cruzam a fronteira em busca de trabalho, assistência médica e/ou mesmo comida. Nas ruas de Boa Vista já são encontradas pessoas que vivem da prostituição oriundas do país vizinho. A velha prostituição de sempre, que nos tempos de crise aguda passa a ser exercida por diversos tipos de profissionais: médicos, engenheiros, advogados, etc. A Argentina viveu essa dramática experiência. O Brasil também já vive, embora de forma oculta, os efeitos da crise e do desemprego.
A nossa sorte é que a economia brasileira é maior que a destes países.
Pois bem, embora diretamente afetado pela situação na Venezuela, o Brasil continua omisso. Se recusa a ter uma participação mais efetiva na solução dos conflitos no país vizinho.
Antes, era compreensível tal comportamento: a cegueira ideológica não permitia que as lideranças do país enxergassem a já avançada ditadura, a destruição dos fundamentos da economia, a perseguição política, e tudo mais que levou aquele país à ruína. Muito pelo contrário, os governantes brasileiros, indiferentes ao que se passava, tinha no chamado regime bolivariano um modelo a seguir. Tanto assim que as maiores lideranças do país, de então, participaram das campanhas – inclusive emprestando apoio material –, de Chaves e a eleição do atual presidente, Nicolás Maduro.
Essa devoção ao autoritarismo bolivariano de Chaves e Maduro por parte das nossas autoridades, fez com que o Brasil levasse um "espeto" monumental no caso da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco e outro maior ainda nas obras que o BNDES financiou na Venezuela – neste último caso não podemos perder de vista que eram sócios na roubalheira, conforme já revelou mais de um delator na Operação Lava Jato.
Agora é diferente, temos um novo governo mais afeito a um mundo democrático.
Diante disso, foge a nossa compreensão que o Brasil se mantenha silente em relação ao país vizinho, sem tentar qualquer tipo de participação ou intermediação para que o país encontre uma saída. Não é demais lembrar que temos milhões de dólares – dinheiro do contribuinte – por lá. O mínimo que esperávamos era que a nossa diplomacia "falasse grosso" em relação às graves violações dos direitos humanos, às prisões arbitrárias de opositores, às reiteradas artimanhas do presidente Maduro para adiar a convocação do referendo pretendido pela oposição, etc. Não é o que vemos, pouca coisa mudou em relação ao comportamento que mantinha o governo anterior. Diversos outros países, até mesmo o Estado do Vaticano, tem tido uma posição mais efetiva em relação a crise venezuelana que o Brasil. Basta dizer que a Igreja Católica vem costurando o diálogo entre o governo e a oposição. Diálogo este que não irá muito longe, trata-se, tão somente, de uma cortina de fumaça para o governo Maduro se manter no poder por mais um tempo ou que caia de podre.
Os ditadores são assim: se acham melhor que todos e nunca sabem a hora de deixar o poder. Trabalham com a perspectiva de se eternizarem nos cargos que ocupam. Quando muito, e para venderem a ideia de uma democracia, permitem um rodízio ou criam mecanismos na constituição a permitir reeleições infinitas e dizerem que foram eleitos pela vontade do "povo".
Os casos estão aí, ao redor do mundo, no nosso continente. A Venezuela é o exemplo mais perfeito disso. O chavismo dominou todas as instituições, manipulou a população com políticas populistas mantidas às custas das receitas abundantes oriundas das reservas de petróleo. Com isso, se deu ao luxo de aprovar a sua reeleição, depois as queria infinitas e, em contrapartida, ofereceu o referendo revogatório: uma possibilidade da população revogar o mandato do governante. Ele, Chaves, pai da ideia, se submeteu a um. E saiu cantando vitória por ser um governo que mais se submetera a eleições.
Naquela ocasião seus aliados, inclusive os daqui, não apenas vendiam seus feitos como tentavam implantar o modelo bolivariano no Brasil. Chegaram a fazer campanha por alteração na Constituição Federal que permitisse a reeleição infinita do presidente, no caso específico, do senhor Lula. Por muito pouco o Brasil não se tornou uma Venezuela, no seu pior.
Já naquela oportunidade, na Venezuela, como agora as instituições estavam dominadas pelo grupo que se assenhoreou do poder. Tanto que são elas que sustentam o governo apodrecido do senhor Maduro. Sobre o tal referendo revogatório solicitado pela oposição já criaram tantas regras casuísticas que dificilmente acontecerá.
Os brasileiros que tanto defendiam o modelo venezuelano, diante do caos que aquele país enfrenta, não dão um pio, nem em solidariedade aos que têm fome. Arranjaram outras bandeiras: serem contra a limitação de gastos - nos moldes que foram contra o Plano Real e a Lei de Responsabilidade Fiscal; serem contra a reforma do ensino médio, que todos sabem precisa ser reformado, com urgência; e serem contra o governo Temer, que eles mesmos elegeram.
Abdon Marinho é advogado.