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Bem Vindo a Pagina de Abdon Marinho, Ideias e Opiniões, Terça-feira, 23 de Abril de 2024



A palavra é o instrumento irresistível da conquista da liberdade.

Escrito por Abdon Marinho

 
Como os livros salvaram minha vida.

Por Abdon C. Marinho.

RECENTEMENTE li uma frase do economista americano James Heckman (Chicago, Illinois, EUA, 1944 -), ganhador do Prêmio Nobel de Ciências Econômicas do ano 2000, que diz: “a tarefa de prover conhecimento às crianças deve começar tão cedo quanto possível, de modo que se ergam alicerce sólidos para formar adultos produtivos e inovadores – duas qualidades tão caras a uma economia moderna”. 

Desde sempre preocupado com a educação e já tendo escrito algumas dezenas de textos sobre o assunto, fiquei especialmente feliz pelo fato do economista americano, laureado com o Nobel – repita-se –, corroborar com aquilo que venho dizendo a minha vida inteira: o Brasil só ocupará o seu verdadeiro lugar no mundo se tivermos uma educação forte, igualitária, inclusiva, que desde a mais tenra idade coloque a criança como senhora de seu próprio destino, provendo-a de condições objetivas educacionais que não a deixe em desvantagem em relação às demais crianças. 

Trata-se de uma verdade tão óbvia que não precisaríamos de palavras bonitas ou de efeito para expressá-la. 

Não faz muito tempo, durante uma semana inteira, o Jornal da Band exibiu uma série de reportagens sobre o incentivo ao hábito de leitura para crianças na primeira infância e os resultados surpreendentes que se pode alcançar com um hábito ou com iniciativas tão singelas na vida e para futuro destas crianças e do país. 

Foi neste mesmo período que durante uma visita do amigo José Ferreira, por alguma razão, pusemo-nos a conversar sobre a importância dos livros nas nossas vidas. Ele me contou da vez que levou uma surra da mãe por gasto todo o dinheiro que ganhara de um tio ou padrinho, em uma viagem de férias, comprando revistas em quadrinhos. Por serem pobres, ela já contava com esse recurso para alguma despesa nas festas de natal. Depois da “pisa”, ele passou a consumir o “produto do crime” em furtivas leituras em um beco próximo a sua casa. 

Contei-lhe também das minhas experiências e de como os livros “salvaram” minha vida. 

Coloco como ponto de partida para minha relação com os livros o “dia seguinte” ao falecimento da minha mãe. Não que tenha enveredado pelo mundo das leituras quando ela partiu, nada disso, quando tal fato se deu tinha pouco mais de cinco anos, naquele tempo só entrávamos na escola depois dos sete, no meu caso, por conta da deficiência física, demorou um pouco mais. 

Uma vez um amigo me questionou sobre a forma como coloquei a minha orfandade em um texto ou vídeo. Segundo ele, dera a entender que ficara órfão de mãe e pai, simultaneamente, e, em seguida dizia que desde muito cedo ajudava meus pais nas atividades do dia a dia e em um comércio. 

Na verdade, quando minha mãe morreu de parto, deixou uma “escadinha” de 09 filhos, de 21 a 0 anos, que o meu pai ficou com a responsabilidade de criar – e fez isso diante de suas possibilidades –, da melhor forma. Quando nos deixou, todos os filhos de seu primeiro casamento, já estavam bem encaminhados ou pelo menos já tinham um “rumo” na vida.  

Sempre considerei como orfandade – pelo menos “contar” a partir daí –, o passamento de minha mãe, pois quando a mãe falta cessam todas as nossas referências, sentimo-nos estrangeiros na nossa própria casa, nos sentimos sem um “lugar” nosso, sem um acolhimento, sem alguém para secar nossos prantos ou perguntar das nossas dores. 

No meu caso, as necessidades eram um pouco maiores uma vez que após a poliomielite minha mãe passou a desempenhar o papel de cuidadora, fisioterapeuta, enfermeira, e tantos outros. Sem ela, findara-se o reinado de D. Abdon I - e único. 

Acho que já ia pela casa dos sete ou oito anos quando, depois de passar alguns meses na escolinha de “latada” do povoado, fui mandado para morar com meus irmãos em Governador Archer, na Rua do Sossego, para estudar no colégio Aldenora Belo. 

Eram crianças cuidando de crianças, não tinha como dar certo. Os primeiros meses, em um mundo totalmente diferente, não foram fáceis. Eu ia para escola, circulava um pouquinho por lá – as vezes nem isso –, e “fugia” para casa. 

Desnecessário dizer que nas minhas primeiras “férias” de volta ao povoado, com meu pai tendo tomado conhecimento, das minhas “fugas” da escola ganhei uma surra de cinturão. Foi um santo remédio. No semestre seguinte nada de fugir de escola e procurava me esforçar o máximo para aprender o que era ensinado. Com o auxílio de uma palmatória, éramos “incentivado” a aprender a tabuada. 

Com oito anos (ou mais) já lia e escrevia alguma coisa. Nas férias, meu pai aproveitava esse “conhecimento” para que anotasse em um caderno o peso das sacas de arroz que buscávamos nas roças daqueles que haviam vendido o produto “na folha”. 

Foi no início da minha adolescência que mergulhei no mundo dos livros. 

Embora já gostasse de ler e tendo nos livros a chave para um mundo só meu, neste período mudou-se para minha rua uma senhorinha já de idade avançada (acho que mais de sessenta ou setenta anos) que possuía diversos livros. 

Não sabia de onde viera ou da sua história, mas ela era uma leitora voraz, passava horas e horas lendo. Me emprestava todos livros que não estivesse lendo para que eu lesse. Fui criando gosto pelo passatempo. 

Quando mudei-me para capital, para seguir em frente nos estudos, perdi totalmente o contato com essa senhorinha a ponto de nem lembrar ou saber o seu nome – acho que só a chamavam de dona Mocinha. 

Por vezes fico a pensar que todas as pessoas que cruzam as nossas vidas fazem isso por algum propósito não determinados por nós. O caso dessa senhora, sempre lembro como o mais ilustrativo. 

Sem motivo algum, uma criança órfã – devia ter dez, onze, no máximo doze anos –, deficiente, faz amizade com uma senhorinha de idade avançada e dessa interação faz despertar o gosto por livros que funcionam como drogas a lhe permitir fugir de todos os seus anseios, inquietações e sofrimentos. 

Nessa “fuga”, todo tipo de literatura me servia, dos livrinhos recreativos com histórias de cowboys americanos aos clássicos da literatura brasileira e mundial; mitologia grega; história clássica, geografia do Brasil e do mundo; ensaios pornográficos e tantos outros.

Acho que nos dias de hoje prenderiam dona Mocinha por me colocar em contato com tanto “material impróprio” a uma criança/adolescente. 

O certo é que lia tudo que me chegasse às mãos, fosse pelas mãos de dona Mocinha, fosse por quaisquer outras mãos. Favorecia a leitura o fato de ficar durante todo o dia tomando de conta de um comércio que meu pai inaugurou para que tomasse conta na Rua Dr. Paulo Ramos, que naquele tempo, como tudo, tinha outro apelido. 

Outra coisa que favorecia o hábito da leitura é que “naquele tempo”, anos setenta, oitenta, todo mundo lia alguma coisa. As mocinhas liam revistas  Sétimo Céu, Sabrina, Bianca, Bárbara, etc; os meninos liam gibis, Tio Patinhas, Pato Donald, Zé Carioca, etc; os jovens liam os “bolsilivros”, Tex, Zagor e mesmos os clássicos da literatura, como José de Alencar, Gonçalves Dias … a leitura era o principal passatempo.

Já na ilha, morando com meu irmão e estudando no Liceu Maranhense – e depois quando me preparava para vestibular –, continuei “viciado” em livros. Após as tarefas domésticas ou qualquer tempo livre corria para a biblioteca. 

Quando Cafeteira assumiu o governo do estado, uma das primeiras medidas, após determinar que frota de veículos públicos de abóbora, foi reativar ou dar maior funcionalidade aos Centros Sociais Urbanos, os CSU’s, através da Secretaria de Assistência Social. No centro do Habitacional Turu tinham diversos cursos destinados a todos os públicos (cheguei a fazer e ser certificado no curso de datilografia) e tinha, também, uma biblioteca com milhares de volumes de livros, que li, caprichosamente, uma grande parte (quase todos). Quando não estava mergulhado nos livros de literatura, estava pesquisando nas enciclopédias Barsa ou Britânica. Muito embora hoje todo o conhecimento esteja à distância de um dedo, “basta dá um Google”, como dizem alguns, as enciclopédias escritas tinham uma vantagem: enquanto você pesquisava um tema, lia ou encontrava diversos outros, indo muito além da pesquisa inicial. Essa é uma vantagem do ensino analógico. 

Foram essas experiências, esse amor aos livros que me fizeram forte e me trouxeram até aqui. 

E por tudo somos gratos. 

Abdon C. Marinho é advogado.