AbdonMarinho - Estupro ideológico.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Domingo, 22 de Setem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Estupro ideológico.

ESTUPRO IDE­OLÓGICO.

Por Abdon Marinho.

OS DOIS assun­tos mais comen­ta­dos no Brasil, nos últi­mos dias, foram o “caso Mar­i­ana Fer­rer” e as eleições amer­i­canas. Emb­ora pareçam, e sejam, assun­tos total­mente difer­entes, pelo menos aqui, estes temas acabam se encontrado.

Cada um ao seu tempo, tratarei de ambos, ini­ciando, neste texto, pelo primeiro.

Esclareço, de iní­cio, que tratarei do caso envol­vendo o suposto estupro, em tese, con­siderando que o processo – como é de praxe –, corre em “seg­redo de justiça”, só sendo público “retal­hos” de uma instrução e a sen­tença abso­lutória, talvez o pivô de toda celeuma, e as ver­sões de ambos os lados, as sus­peitas de uma sen­tença injusta, os abu­sos clara­mente per­pe­tra­dos con­tra a vítima pela defesa do acu­sado e a omis­são, que chega às raias do crime, do juiz e do pro­mo­tor que atu­aram no caso.

Em que pese ser o estupro um dos crimes mais repu­di­a­dos, a ponto daque­les que o prati­cam não encon­trarem guar­ida nem entre ban­di­dos, e por isso lhes dis­pen­sam celas espe­ci­ais, os chama­dos “seguros”, e não raro, muitos defen­sores recusarem a defesa de tais crim­i­nosos, o crime de estupro, infe­liz­mente, ainda ocorre no Brasil em uma pro­porção absurda.

Segundo o Añuário Brasileiro de Segu­rança Pública, ocorre um estupro a cada oito min­u­tos, e, no ano pas­sado, 2019, foram reg­istra­dos 66.123 estupros, dos quais 57,9% con­tra víti­mas de até 13 anos e 85,7% con­tra pes­soas do sexo fem­i­nino.

Em pouco mais de uma década o número de estupros no Brasil cresceu mais de seis vezes. Cresceu este vol­ume ou foram rev­e­la­dos todos estes casos a par­tir da imple­men­tação de leg­is­lação e pro­gra­mas de atendi­mento às víti­mas, bem como, o “alarga­mento” do con­ceito da tip­i­fi­cação do crime, muito emb­ora ainda se saiba que exista muita sub­no­ti­fi­cação.

Qual­quer que seja o motivo para o aumento deste tipo de crime, o fato é que não podemos ser lenientes com o mesmo, deixar de apu­rar e punir os respon­sáveis, ofer­e­cer assistên­cia e pro­teção as víti­mas e pre­venir para que o mesmo não acon­teça.

Durante décadas a vio­lên­cia con­tra a mul­her foi igno­rada.

Se chegava a uma del­e­ga­cia e denun­ci­ava um estupro geral­mente era tratada como “vadia”, por vezes se exi­gia que provasse ter sido abu­sada ou que resi­s­tira ao crime ao lim­ite da própria vida e, o pior, disponibilizava-​se para a imprensa os dados do reg­istro poli­cial que, sem qual­quer respeito ou trata­mento, eram divul­ga­dos, com o nome da vítima, o endereço, fil­i­ação e, até mesmo, o que o vio­len­ta­dor – ou vio­len­ta­dores –, fiz­eram com a mesma.

Não bas­tasse toda a vio­lên­cia física e psi­cológ­ica já sofrida a vítima tinha, ainda, que supor­tar esse “lin­chamento público”.

Certa vez, em um caso de estupro cole­tivo ocor­rido na cap­i­tal, acho eram os anos 90 do século pas­sado, o jor­nal noti­ciou, como se fosse um filme pornográ­fico, em detal­hes tudo que os meliantes fiz­eram com a vítima, não a poupando nem dos detal­hes mais sór­di­dos.

Esse parece que foi o último caso que li na imprensa, depois pas­saram a ocul­tar o nome e endereço da vítima ou a não destacar como faziam ante­ri­or­mente.

Daí a neces­si­dade de se tratar os casos de vio­lên­cia sex­ual com extremada pre­caução. Não só porque his­tori­ca­mente sem­pre se atribuiu às víti­mas a respon­s­abil­i­dade pela vio­lên­cia sofrida, ora por dizer que deter­mi­nada roupa seria “provoca­tiva”; ora, por dizer que a mul­her não “resi­s­tira”, o impli­caria no “con­sen­ti­mento”; ora, por dizer que a mul­her con­sen­tira só se arrepen­dendo pos­te­ri­or­mente para ale­gar o suposto estupro para “tirar” do suposto vio­lador algum tipo de van­tagem.

Claro que não podemos deixar de aten­tar – ou fin­gir descon­hecer –, que não pou­cas vezes acon­te­cem exageros e não raro uma “can­tada” mal feita – ou mesmo as bem feitas –, é con­fun­dida com assé­dio sex­ual ou moral.

Não raro, tam­bém, são as vezes em muitas mul­heres usam um instru­mento legí­timo de pro­teção con­tra a vio­lên­cia domés­tica como forma de vin­gança ou perseguição con­tra seus ex-​companheiros, ex-​maridos ou ex-​namorados.

Emb­ora a regra seja de vio­lên­cia con­tra a mul­her – e os números com­pro­vam isso –, exis­tem estas detur­pações.

Daí a neces­si­dade de se exam­i­nar os casos que são pos­tos com cautela, sem paixões e pre­con­ceitos ou, como dizia um antigo mestre, “cum grano salis”.

O chamado “caso Mar­i­ana Fer­rer” reabre tais feri­das.

Pelas as infor­mações que cir­cu­lam “extra autos”, já que o caso, como dito ante­ri­or­mente, corre em seg­redo de justiça, a vítima teria sido “dopada” com o alu­cinógeno con­hecido pelo nome “boa noite Cin­derela”, lev­ada a um dos camarins e abu­sada sex­ual­mente por um cidadão; ato con­tínuo ela teria procu­rado a del­e­ga­cia e feito o exame de corpo e delito que atestou a con­junção car­nal e o DNA do acu­sado nas suas roupas ínti­mas e den­tro da moça, que seria virgem.

Através de rep­re­sen­tação da vítima o Min­istério Público denun­ciou o suposto predador sex­ual pelo “Art. 217-​A. Ter con­junção car­nal ou praticar outro ato libidi­noso com menor de 14 (catorze) anos: … § 1º Incorre na mesma pena quem prat­ica as ações descritas no caput com alguém que, por enfer­mi­dade ou defi­ciên­cia men­tal, não tem o necessário dis­cern­i­mento para a prática do ato, ou que, por qual­quer outra causa, não pode ofer­e­cer resistên­cia”.

O fato da vítima suposta­mente encontrar-​se “dopada” enquadraria na última parte do pará­grafo primeiro.

A sen­tença que absolveu o suposto autor do fato – com o pare­cer favorável do Min­istério Público –, tem como ponto essen­cial saber se o ato sex­ual foi con­sen­tido ou não ou se a suposta vítima teria condições de con­sen­tir o mesmo.

Afirma o mag­istrado: “assim, diante da ausên­cia de ele­men­tos pro­batórios capazes de esta­b­ele­cer o juízo de certeza, mor­mente no tocante à ausên­cia de dis­cern­i­mento para a prática do ato ou da impos­si­bil­i­dade de ofer­e­cer resistên­cia, indis­pen­sáveis para sus­ten­tar uma con­de­nação, decido a favor do acu­sado … com fun­da­mento no princí­pio do in dubio pro reo”.

O princí­pio do in dubio pro reo é uma garan­tia sec­u­lar do dire­ito brasileiro e destina-​se a pro­te­ger os cidadãos.

O Estado/​juiz recon­hecendo inex­i­s­tir certeza quanto a con­duta do agente lhe con­cede o bene­fí­cio da dúvida. Ou seja, na dúvida antes um cul­pado solto a um inocente preso.

Logo, poder-​se-​ia inter­pre­tar a sen­tença abso­lutória do mag­istrado como um legí­timo exer­cí­cio do dever de cautela.

Entre­tanto, tam­bém é sabido que um processo, con­forme a sua con­dução, a forma como é instruído e até mesmo as per­gun­tas que são feitas para as teste­munhas e partes, pode levar à certeza ou a dúvida.

O ponto da sen­tença que o juiz ao reg­is­trar dúvida e por conta disso absolver o réu, levou ao alvoroço de se criar nos meios de comu­ni­cação a figura do “estupro cul­poso” – inex­is­tente no dire­ito brasileiro –, que, foi, e tem sido, explo­rado à exaustão.

A isso, somou-​se, ainda, a divul­gação de tre­chos da audiên­cia de instrução crim­i­nal na qual desnudou-​se para a sociedade os exces­sos prat­i­ca­dos pela defesa do réu em “vilanizar” a vítima diante do silên­cio obse­quioso e omis­sivo do mag­istrado e do rep­re­sen­tante do Min­istério Público e do próprio advo­gado da vítima – que, deduzo, esteve pre­sente a audiên­cia vir­tual.

Ainda que se diga tratar-​se de tre­chos ou que as falas estão fora do con­texto, não acred­ito que isso venha mudar o fato de que trataram a vítima como se a mesma estivesse diante de um tri­bunal de inquisição da Idade Média, de nada lhe val­endo os pedi­dos para que fosse tratada com respeito e/​ou o choro.

Para aumen­tar a des­graça do acon­te­cido, como a divul­gação da audiên­cia deu-​se através de um site lig­ado à esquerda brasileira e mundial, logo apare­ce­ram os ideól­o­gos da dire­ita e esquerda, a favor e con­tra a vítima.

O Brasil tornou-​se a primeira nação do mundo a inau­gu­rar o con­ceito de “estupro ide­ológico”, com a esquerda defend­endo que ocor­rera um estupro e a dire­ita afir­mando que não, ou, caso tenha havido, a culpa teria sido da vítima.

Com o país reg­is­trando um estupro a cada oito min­u­tos parece-​me sur­real o tema vire pauta de debates ide­ológi­cos. Além da gravi­dade do tema o que choca é levem o debate para o palco da política e da ide­olo­gia.

Con­fesso que não sei onde o país vai parar com tamanha rad­i­cal­iza­ção política, a ponto de se poli­ti­zar um episó­dio de suposto estupro, quando o mesmo dev­e­ria ficar restrito às esferas poli­ci­ais e judi­ciárias, com apu­ração rig­orosa e punição exem­plar para o cul­pado, quando com­pro­vada a culpa.

Mas não, por aqui, nem o estupro, quer dizer, a luta con­tra o estupro – e todas as for­mas de vio­lên­cia con­tra a mul­her os as mino­rias –, é capaz de unir o país.

Abdon Mar­inho é advogado.