AbdonMarinho - UMA DEMOCRACIA QUE FLERTA COM A DITADURA.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Segunda-​feira, 29 de Abril de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

UMA DEMOC­RA­CIA QUE FLERTA COM A DITADURA.

UMA DEMOC­RA­CIA QUE FLERTA COM A DITADURA.

Por Abdon Marinho.

EXISTE UMA quase una­n­im­i­dade no mundo: viver sob regimes democráti­cos é infini­ta­mente mel­hor do que sob os regimes total­itários. Tal pre­missa é tão ver­dadeira que mesmo as ditaduras utilizam-​se de todos os mecan­is­mos para não serem apon­tadas como o que são: ditaduras.

No mundo inteiro é assim. Ape­nas os dementes ou aque­les que perderam por com­pleto a empa­tia com os povos que lid­eram ten­tam pas­sar ou se venderem como ditadores.

O Brasil, assim como diver­sas out­ras nações do con­ti­nente, ao longo de suas histórias exper­i­men­ta­ram regimes dita­to­ri­ais com breves inter­stí­cios democráti­cos.

A propen­são à ditaduras é tão enraizada que estu­diosos sérios – e não de hoje –, têm como certo que as ditaduras, no nosso e noutros países da chamada América-​Latina, são cícli­cas e sem­pre estão à espre­ita (ou a ditadura ou um régime populista).

Em meus vagares tenho refletido sobre a situ­ação do país.

A República foi procla­mada como um golpe mil­i­tar em 1889. Se con­sid­er­amos a primeira República como democrática, ainda assim, já em 1930, sofre­mos a primeira rup­tura insti­tu­cional com a chamada “Rev­olução de 30”, pas­sando o país a ser coman­dado por Getúlio Var­gas, como líder pop­ulista ou como dita­dor até 1945.

O período de “nor­mal­i­dade democrática”, com eleições suposta­mente livres, foi até 1964, ou seja, durou menos de 20 anos. A par­tir de 1964 até 1985 tive­mos um régime mil­i­tar, a longa noite de 21 anos.

Na história da República brasileira este é o período de “nor­mal­i­dade” democrática mais longo, con­tando com quase trinta e cinco anos. Tão longo que a democ­ra­cia já insiste em fler­tar com a ditadura. Flerta-​se tanto que já há quem diga que um novo ciclo dita­to­r­ial ainda não se ini­ciou porque nos quar­téis – onde tradi­cional­mente ecoam tais sen­ti­men­tos –, o deserto de lid­er­anças é o mesmo, senão pior que o da vida civil.

Sem con­tar que não existe “afi­nação” entre as lid­er­anças políti­cas civis e as mil­itares.

Ape­nas por isso, segundo dizem, não ocor­reu ainda uma nova rup­tura na ordem institucional.

Repare que não sou defen­sor de qual­quer rup­tura na ordem democrática, pelo con­trário, me coloco frontal­mente con­tra tais aven­turas.

É, jus­ta­mente, por ser con­tra qual­quer rup­tura insti­tu­cional que faço esse breve resumo histórico e alerto a nação para a gravi­dade do momento em que vive­mos.

Enganam-​se aque­les que pen­sam que os golpes mil­itares ocor­reram sem o con­sór­cio da sociedade civil. Talvez isso tenha se dado ape­nas no golpe de 1889, que pôs fim ao Império, quando o que con­tou mesmo foi o “acordão” das elites.

Em todos os demais, ainda que ape­nas no primeiro momento, as rup­turas à ordem insti­tu­cional con­tou com o apoio sig­ni­fica­tivo da pop­u­lação civil, inclu­sive o último, de 1964.

Quando alerto para fato de que a democ­ra­cia brasileira começa a “fler­tar” com um régime de exceção é porque vejo nas ruas e nas “novas ruas”, que aten­dem pelo nome de redes soci­ais, um clima de pro­funda insat­is­fação com as nos­sas insti­tu­ições.

Um exem­plo bem ilus­tra­tivo deste desapreço foi o “não assas­si­nato” do min­istro do Supremo Tri­bunal Fed­eral — STF, Gilmar Mendes.

Quando o ex-​procurador-​geral da República, Rodrigo Janot, rev­elou, em entre­vista, que plane­jara – e por muito pouco não exe­cu­tara –, o min­istro da mais ele­vada Corte do país, emb­ora tal rev­e­lação tenha cau­sado estu­por entre a classe jurídica e mesmo política, o que mais se viu no seio da sociedade, entre o “povão”, foram os lamen­tos por ele não ter con­seguido dar cabo ao homicí­dio.

Vejam, mesmo a promessa de elim­i­nação física de uma pes­soa, uma autori­dade da mais ele­vada Corte do Brasil, não des­perta sen­ti­men­tos de empa­tia ou sol­i­dariedade, pelo con­trário, o sen­ti­mento de grande parte da pop­u­lação é de frus­tração com “incom­petên­cia’’ do suposto homi­cida.

E dirão: — ah, era o Gilmar!

Uma alusão ao min­istro que desde que assumiu o posto no STF tem con­struído uma sól­ida rep­utação de destru­idor de proces­sos, quase todos favore­cendo a escória cor­rupta que não se con­strange em roubar o país – mas há, tam­bém, os homi­ci­das, os traf­i­cantes, e tan­tos out­ros que sem­pre con­tam com a com­preen­são do min­istro para os seus “malfeitos”. Não foi sem razão que há mais de dez anos, no plenário daquela Corte, o então min­istro Joaquim Bar­bosa, até como desabafo disse em alto e bom som, dirigindo-​se ao min­istro: — Vossa excelên­cia está destru­indo essa corte.

O tempo pas­sou e o min­istro só aumen­tou sua ques­tionável atu­ação. Se vai destruir a corte como vati­ci­nou o ex-​colega, ainda não se sabe.

Mas, difer­ente do que podem imag­i­nar, não é ape­nas o min­istro Gilmar Mendes que tem des­per­tado os instin­tos mais prim­i­tivos da sociedade.

Assim como não é ele soz­inho o respon­sável pela “destru­ição do STF”, caso, de fato, venha a acon­te­cer. A ele já se soma mais de meia dúzia de min­istros que a despeito de diz­erem que estão jul­gando no inter­esse da sociedade, não é assim que estão sendo vis­tos.

Não faz muitos dias suas excelên­cias decidi­ram que na ordem de apre­sen­tação das ale­gações finais nos proces­sos penais os réus delata­dos devem, obri­ga­to­ri­a­mente, falar depois dos réus dela­tores.

A decisão abre uma avenida para anu­lação de um sig­ni­fica­tivo número de sen­tenças de cidadãos já con­de­na­dos.

O Código de Processo Penal é de 1973, ou seja, já tem quase meio século. Lá não con­sta a regra que agora os min­istros impuseram aos proces­sos.

Desde 1973, nunca tive­mos nos mes­mos proces­sos réus dela­tores e delata­dos? Todos eles não falaram no mesmo tempo proces­sual?

Pois bem, os juízes de primeira instân­cia – e as cortes que ref­er­en­daram suas decisões –, terão os proces­sos retor­na­dos ao momento proces­sual ante­rior à sen­tença con­de­natória, para que se obe­deça a uma regra cri­ada, agora, pelos min­istros do STF.

Acho que será a primeira vez na história do mundo que se des­faz uma sen­tença feita em obe­diên­cia à norma escrita.

A “saia justa” cri­ada pelos min­istros é tão justa que já falam em dar um “jeit­inho” na excrescên­cia, criar uma “mod­u­lação” esta­b­ele­cendo os casos em que o entendi­mento “extra-​legal” será apli­cado.

Se pudessem – não duvido que ten­tem –, as excelên­cias diriam que as novas regras extra-​legais se apli­cam nos casos das pes­soas tais e tais.

Mas não pensem que suas excelên­cias estão se dando por sat­is­feitas. Agora mesmo, segundo se noti­cia, estão tra­mando uma maneira de “proibir” qual­quer prisão em segunda instân­cia. Dora­vante, qual­quer crim­i­noso, seja ele homi­cida, estuprador, latro­cida, traf­i­cante, ladrão, cor­rupto, somente poderá ser preso após o chamado “trân­sito em jul­gado” da sen­tença con­de­natória. Se assim for, víti­mas e crim­i­nosos sairão pelas mes­mas por­tas dos tri­bunais nos dias de seus jul­ga­men­tos – se ainda exi­s­tir jul­ga­mento no país.

A “brin­cadeira” rep­re­sen­tará a soltura, segundo esti­ma­ti­vas, de quase 180 mil con­de­na­dos, pelos crimes mais diver­sos.

Me per­gunto se não seria menos oneroso ao país se fizessem um lei esta­b­ele­cendo que deter­mi­nadas pes­soas não poderão ser pre­sas em hipótese alguma. Pode­riam colo­car os nomes das pes­soas inim­putáveis, inclusive.

Este é o nível da nossa Suprema Corte.

Se o STF está assim, podemos imag­i­nar como se encon­tra o par­la­mento. Esse em matéria de ban­dalha não con­segue nos decep­cionar nunca. Não bas­tasse ser o mais caro e per­dulário do mundo, não cansam em bus­car maneiras de aliviar as bur­ras da nação.

Sem qual­quer pudor pas­saram à chan­tagem explícita e a leg­is­lar fla­grante­mente em causa própria.

Os exem­p­los estão aí para quem quiser ver.

Não faz muito tempo as excelên­cias cri­aram a chamada emenda impos­i­tiva. Os val­ores que se despende com as tais emen­das par­la­mentares, hoje, já é muito supe­rior aos recur­sos que o exec­u­tivo gasta com inves­ti­men­tos, excluí­dos os gas­tos prev­i­den­ciários e recur­sos vinculado.

Mas não é só, todos no Brasil, exce­tuando a Polí­cia Fed­eral e o Min­istério Público Fed­eral, sabem ou pelo menos descon­fiam que estas emen­das nada mais são do que uma forma das excelên­cias faz­erem for­tuna às cus­tas do contribuinte.

A nego­ci­ação de emen­das no Con­gresso Nacional e fora dele, parece não ser seg­redo para ninguém, havendo não só a “com­pra” da emenda “na folha”, como crédito futuro, como a nego­ci­ação da mesma no des­tino. Segundo dizem, o “lucro”, depen­dendo do caso, gira, em média, nos trinta por cento.

Claro que devem haver par­la­mentares sérios, decentes. Esses, entre­tanto, já são a exceção da exceção. A larga maio­ria está mesmo é fazendo for­tuna. Noutras palavras, roubando o din­heiro público.

Não pensem que existe lim­ite à ousa­dia dos crim­i­nosos. Agora, para votarem qual­quer matéria, ainda as mais pre­mentes ao inter­esse nacional, condi­cionam à lib­er­ação de suas emen­das. Par­ti­ram para a chan­tagem explícita. Aquilo que ladrões fazem com a arma na mão as excelên­cias fazem com os seus votos no par­la­mento.

Mais que ninguém levaram a sério a ideia de que o voto é uma arma. Arma que usam para nos assaltar.

Tem mais. Não sat­is­feitos com tudo que nos tiram, suas excelên­cias esta­b­ele­ce­ram que nós, con­tribuintes, deve­mos pagar por suas cam­pan­has eleitorais e pelo fun­ciona­mento dos seus par­tidos políti­cos.

Para isso des­ti­naram alguns bil­hões de reais para os fun­dos eleitorais e par­tidários. Na ânsia de come­terem deli­tos, mesmo esses recur­sos, con­forme apu­rado em inúmeros inquéri­tos, dão um jeito de sub­trair em proveito próprio.

Na busca da impunidade cri­aram leis que tor­nam frouxas as regras de fis­cal­iza­ção dos recur­sos públi­cos e mais uma, de abuso de autori­dade, que con­strange pos­síveis inves­ti­gadores.

Tudo isso cos­tu­rado em um “pacto de elites” entre os poderes da nação.

Não é sem motivo que autori­dades são hos­tilizadas quando vis­tas em locais públicos.

Não é sem razão que deve­mos temer pelo futuro da democ­ra­cia brasileira.

E deve­mos per­gun­tar: depois de tudo isso, podemos falar em democracia?

Abdon Mar­inho é advo­gado.