A DEFESA DA DEMOCRACIA É COMPROMISSO DE TODOS - Parte I.
Por Abdon C. Marinho.
POSSUIR boa memória tem suas vantagens – como lembrar de acontecimentos que nos trazem momentos alegres –, e desvantagens, como lembranças de outros tristes e sofridos que desejávamos esquecer; traz-nos, também, certas responsabilidades e obrigações, como as que somos obrigados a tratar no presente texto.
Se a memória não me falha, no segundo semestre de 1984, foi perguntado ao general João Figueiredo, o último dos generais-presidentes do ciclo iniciado em 1964, o que aconteceria após a eleição marcada para ocorrer em 15 de janeiro do ano seguinte, que viria ser a última do Colégio Eleitoral.
A indagação, mas uma vez se não me falha a memória, ocorrida no Sítio do Dragão, bem fiel ao seu estilo, à pergunta formulada, o general respondeu – não com estas palavras –, que após a eleição o eleito seria empossado e ele voltaria a cuidar dos seus cavalos.
O fato ocorreu há 38 anos e na verdade reportava a uma outra garantia, outro fato histórico, ocorrido em 1977, também numa entrevista.
Perguntado sobre se faria e como faria a abertura política, o general Ernesto Geisel respondeu de forma bem fiel ao seu estilo, e nas palavras parecidas com as ditas aqui: “faremos a abertura política nem que seja na marra”.
Em 15 de janeiro de 1985 o Colégio Eleitoral reuniu-se – conforme a Carta Constitucional determinava –, e elegeu a chapa de oposição aos militares: Tancredo Neves e José Sarney, do MDB que disputara contra Paulo Maluf, do PDS, partido que dava sustentação política ao regime militar desde o tempo que ainda chamava-se Arena.
Apesar do resultado adverso no Colégio Eleitoral não lembro (e não há registro) de nenhum questionamento ao cumprimento do resultado do pleito, ainda que tenha ocorrido de forma indireta.
Mais, na véspera da posse o presidente eleito foi internado tomando posse o vice-presidente, José Sarney.
Mesmo a posse de Sarney, eleito como vice-presidente, não ocasionou qualquer questionamento ou retrocesso institucional.
Quando sugeriram a Ulysses Guimarães, o grande timoneiro de todo o processo que culminara com a vitória de Tancredo/Sarney, que assumisse a presidência, este refutou a ideia dizendo que dever-se-ia cumprir a Constituição vigente.
De 15 de março a 21 de abril daquele ano, quando deu-se o passamento de Tancredo Neves e mesmo depois, apesar de todas as turbulências, ninguém cogitou um retrocesso institucional.
A crise econômica durante o governo Sarney foi a mais aguda da nossa história. Os planos econômicos que tentavam estancar a inflação e que cortavam os zeros da moeda se sucediam sem alcançar êxito algum.
Basta dizer que no governo Sarney a inflação alcançou os três dígitos mensais. Era a hiperinflação. No último mês de governo chegou a 287% (duzentos e oitenta e sete por cento). Há quem diga que ultrapassou a barreira dos 500% (quinhentos por cento).
Apesar de tudo, o país vivia clima de “normalidade”, ninguém falava ou sugeria uma volta ao passado.
Ainda em 1985 realizou-se eleições para os prefeitos das capitais – até então eram nomeados – e, em 1986, eleições para o Congresso Nacional (que seria constituinte), para governadores e deputados estaduais.
Em 1988 o país se redesenhou através de uma nova Constituição Federal.
Em 1989, com a abreviação do mandato de Sarney, tivemos a primeira eleição para a presidente da República, da qual participou todas as correntes políticas do país.
E veio o governo Collor de Mello que no primeiro dia decretou feriado bancário para lançar um pacote de medidas sendo que a principal delas foi o “confisco” de todos os valores depositados em instituições bancárias.
Fidel Castro, o então ditador de Cuba, que veio para a posse saudou o surgimento de mais uma república socialista no continente – na verdade estava fazendo chiste com o medida de Collor.
E vieram os anões do orçamento e o PC Farias e a enxurrada de corrupção e outros desatinos praticados na Casa da Dinda.
E por fim, veio o impeachment de Collor, com milhões de brasileiros nas ruas apoiando.
O primeiro presidente eleito pelo voto direto na “Nova República” pós ditadura militar foi o primeiro a ser cassado dentro das normas legais.
E veio o Itamar Franco, vice-presidente que assumiu, e com ele o Plano Real que estabilizou a economia e debelou a inflação ainda galopante.
Graças ao êxito do Plano Real, em 1994, elegeu-se presidente o senhor Fernando Henrique Cardoso que “nadando” em popularidade e também por métodos poucos ortodoxos, conseguiu, em 1997, aprovar uma emenda constitucional que que lhe garantiu a reeleição no ano seguinte.
Em 2002 quem elegeu-se foi o líder do Partido dos Trabalhadores - PT, senhor Luís Inácio Lula da Silva, primeiro presidente dito de esquerda a comandar o país.
E no governo do senhor Lula apareceram os escândalos dos correios, e o principal, o do “mensalão”, uma perversão da democracia caracterizada pela compra de apoios políticos dentro do Congresso Nacional que levou à condenação diversos líderes partidários pelo Supremo Tribunal Federal - STF.
O senhor Lula, apesar do escândalo conseguiu reeleger-se em 2006.
Em 2010, o PT conseguiu manter a hegemonia política e eleger a senhora Dilma Rousseff, primeira mulher a comandar o país.
No governo da senhora Dilma eclodiu um outro escândalo de proporções ainda maiores: o “petrolão”, cujo nome deve-se ao fato de ter como principal foco de corrupção centralizado na Petrobras e nas suas subsidiárias, com diretorias partilhadas entre os partidos que davam sustentação ao governo.
Em 2013, eclodiram em todo país manifestações populares contra os “malfeitos” dos políticos e diversas outras pautas.
Apesar disso a senhora Dilma Rousseff acabou sendo reeleita, em 2014, sendo cassada em 2016, por supostas irregularidades cometidas no seu governo mas, principalmente, porque deixara de ter sustentação política.
Quem assumiu o comando da nação foi o vice-presidente, Michel Temer, que acabou sendo apanhado em conversas pouco republicanas com pessoas menos republicanas ainda.
Os escândalos dos governos petistas tiveram as investigações através da chamada “Operação Lava Jato”, e bilhões de reais foram recuperados e muitos dos corruptores e corruptos presos.
Quem também acabou sendo investigado por “malfeitos” diversos foi o ex-presidente Lula, que acabou sendo condenado em diversas instâncias e até preso durante mais de quinhentos dias.
Antes disso, em 2018, tivermos novamente eleições presidenciais, sagrando-se vitorioso o então obscuro deputado Jair Bolsonaro, que às vésperas das eleições levara uma facada e acabou catalisando votos em seu favor.
A análise dos últimos quatro anos deixo para a história.
Fiz essa breve retrospectiva – cujas falhas devem ser perdoadas, pois feita de “memória” –, apenas para mostrar que desde 1985 o Brasil vem enfrentando e resolvendo todas suas dificuldades e e crises dentro do arcabouço jurídico pátrio, tendo as instituições funcionado e dado as respostas necessárias e aceitas por todos.
Em todos estes anos nenhum dos eleitos ou perdedores das diversas eleições chegaram a questionar a legitimidade do processo político/eleitoral brasileiro. Mesmos as reclamações, pedidos de verificações, deram-se dentro das normas legais e os seus deslindes, pelas instituições, aceitos e respeitados por todos.
E aí, chegamos a este momento, em que 38 anos depois da pergunta feita por Glória Maria (?) ao então presidente João Batista Figueiredo, ouço um jornalista perguntar ao atual mandatário se ele aceitará o resultado das urnas.
Ao ouvir tal pergunta me veio a sensação de “dèja vu”, como se tivesse ingressando noutro grande sucesso dos anos oitenta, o filme “De volta para o Futuro”, sucesso de 1985. Me vi ouvindo a pergunta feita ao general/presidente no ano de 1984.
Pior do que ser uma pergunta “cabível” quase quarenta anos depois de tantos “perrengues” e sacrifícios da sociedade brasileira foi a “enviesada” resposta obtida do mandatário que, em pleno século XXI, no jornal de maior audiência do país, informa à patuleia condições para respeitar o resultado das urnas: desde que limpas e transparentes.
Mas quem irá dizer que as eleições foram limpas e transparentes? Ele? Seu grupo? Alguns generais das Forças Armadas que esqueceram seu papel e se tornaram partidários?
Como vimos, desde 1985 que a democracia brasileira vem se consolidando, enfrentando e resolvendo suas dificuldades sem a tutela de ninguém.
Só agora vemos, também, a indevida e injustificada intromissão das Forças Armadas em assuntos civis numa tentativa de resgatar o protagonismo – ou por tolice –, que só tiveram no período anterior à redemocratização do país.
Passamos quase quarenta anos sem sabermos os nomes das principais autoridades militares do país – estavam onde é o seu lugar: os quartéis –, agora dia sim, no outro também, estão nos jornais, nos rádios, canais de televisão ou na internet dando “pitaco” sobre tudo que não é da sua alçada; se avistando com autoridades e questionando sobre assuntos civis.
A impressão que se tem é que o Brasil tornou-se uma “republiqueta de bananas” latino-americana ou dos confins da África.
Em nenhuma democracia do mundo acontece isso – não naquelas que mereçam tal denominação.
O Brasil vive uma situação de “anormalidade” democrática conforme demonstraremos próximo texto.
Abdon C. Marinho é advogado.