AbdonMarinho - O piso, o Supremo e os oportunistas.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

O piso, o Supremo e os oportunistas.


O PISO, SUPREMO E OS OPOR­TUNISTAS.

Por Abdon C. Marinho.

DESDE que come­cei a exerci­tar meu mag­istério – e já se vão mais de 25 anos –, que advogo para municí­pios. Durante esses anos se dis­cute e se recon­hece a neces­si­dade de rea­justes salari­ais per­iódi­cos para as demais cat­e­go­rias dos servi­dores públi­cos e não ape­nas para os pro­fes­sores (agora, servi­dores da edu­cação).

O que acon­te­cia – e acon­tece –, é que após o rea­juste obri­gatório do salário mín­imo e do piso do mag­istério, as gestões públi­cas munic­i­pais enfrentavam as cobranças dos demais servi­dores, prin­ci­pal­mente da saúde, por rea­justes, o que é, reconheçam-​se, justo e necessário.

São vinte cinco anos, só os anos que acom­panho, que assisto os servi­dores públi­cos da saúde – e de out­ras cat­e­go­rias – recla­marem por mel­hores salários e só con­seguirem uns poucos reais, sem­pre insu­fi­cientes, sequer, para com­pen­sar as per­das salari­ais do ano ante­rior, aliás, dos anos ante­ri­ores, pois já são anos que não têm rea­justes.

Logo, não ape­nas se apre­senta justa como necessária a aprovação de um piso salar­ial para a cat­e­go­ria.

Vou além, necessário se faz a aprovação de pisos salari­ais para todas as demais cat­e­go­rias sob pena de ocor­rer o que já vem ocor­rendo hoje: uma cat­e­go­ria tem seu dire­ito a um salário justo recon­hecido enquanto as demais não tem qual­quer rea­juste.

Onde residiu o equívoco na aprovação da lei do piso para os servi­dores da saúde, objeto do pre­sente texto?

Na des­ti­nação de recur­sos orça­men­tários para custear tal despesa.

Ainda falando do recorte social que acom­panho há um quarto de século: os municí­pios.

Os gestores munic­i­pais não negam aumento aos servi­dores públi­cos, anual­mente, por querer ou por serem “mal­vadões”, pelo con­trário – pode ser até que exis­tam exceções –, a maio­ria, a grande maio­ria, não fazem por dois motivos óbvios: a falta de din­heiro e a imposição de cumprirem o lim­ite de gas­tos com pes­soal.

Como sabe­mos, desde o ano 2000 que está em vigor a Lei de Respon­s­abil­i­dade Fis­cal — LRF, a Lei Com­ple­men­tar nº. 101/​2000, que surgiu jus­ta­mente para orga­ni­zar as finanças públi­cas.

A LRF obriga a União, os Esta­dos e o Dis­trito Fed­eral e os municí­pios a cumprirem o lim­ite de gas­tos com pes­soal. Den­tro de cada esfera, os poderes con­sti­tuí­dos tam­bém são obri­ga­dos a cumprirem o lim­ite de gas­tos com pes­soal.

O artigo 19 da LRF esta­b­elece: “Art. 19. Para os fins do dis­posto no caput do art. 169 da Con­sti­tu­ição, a despesa total com pes­soal, em cada período de apu­ração e em cada ente da Fed­er­ação, não poderá exceder os per­centu­ais da receita cor­rente líquida, a seguir dis­crim­i­na­dos: I — União: 50% (cinqüenta por cento); II — Esta­dos: 60% (sessenta por cento); III — Municí­pios: 60% (sessenta por cento)”.

Só para se ter uma ideia, quando o gov­erno fed­eral, medi­ante por­taria, elevou em 33,24% o piso do mag­istério a maio­ria dos municí­pios brasileiros, ainda falando den­tro do recorte, ultra­pas­saram ou pas­saram a enfrentar difi­cul­dades para man­ter as finanças públi­cas em con­sonân­cia com o lim­ite de gas­tos esta­b­ele­ci­dos na Lei de Respon­s­abil­i­dade Fis­cal.

Os TCE’s, inclu­sive, estão noti­f­i­cando mil­hares deles para que se ade­quem aos lim­ites da lei.

Dito isso, parece-​nos temerário que as Casas do Par­la­mento e a Presidên­cia da República colo­quem em vigor uma lei sem infor­mar aos seus prin­ci­pais des­ti­natários: esta­dos e municí­pios, quais são as fontes de “recur­sos novos” para supor­tar a despesa.

Ora, ao longo dos anos, notada­mente, os municí­pios foram recebendo respon­s­abil­i­dades sem que as receitas aumen­tassem, tal situ­ação tem ger­ado uma série de transtornos as administrações.

Os cidadãos, cada vez mais, con­scientes de seus dire­itos, têm batido cada vez mais e com mais fre­quên­cia nas por­tas dos Poder Judi­ciário, recla­mando por seus direitos.

São raros os dias que não chegam aos gabi­netes dos gestores munic­i­pais uma recomen­dação do Min­istério Público, uma decisão judi­cial, recomen­dando ou deter­mi­nando que se atenda essa ou aquela demanda dos cidadãos – que são jus­tas, repita-​se, mas que, na maio­ria das vezes, não cabem nos orça­men­tos munic­i­pais.

Os municí­pios são deman­da­dos para assi­s­tirem do nasci­mento, com algum auxílio enx­o­val para o bebê até a morte, com o chamado auxílio funeral. Até as carpi­deiras para chorarem nos velórios, o café e cachaça, os municí­pios “ban­cam”.

Agora mesmo saiu uma decisão judi­cial reconhecendo/​determinando que o poder público deve prover o acesso uni­ver­sal às creches.

Claro que é um dire­ito das mães terem creches públi­cas para deixarem os fil­hos e poderem tra­bal­har, mas como os municí­pios poderão aten­der o vol­ume de demanda no tempo exigido?

Outro dia, em uma das min­has andanças, um gestor me procurou com uma demanda inusi­tada: o municí­pio não tinha como supor­tar o vol­ume de req­ui­sições de TFD.

Os que não têm famil­iari­dade com o termo, TFD sig­nifica Trata­mento Fora do Domicílio. Qual­quer cidadão que neces­sita de trata­mento fora do seu domicílio “tem dire­ito” de requerer um auxílio do poder público para si – e na maio­ria dos casos –, para um acom­pan­hante.

O gestor argu­men­tava que mesmo os que “não pre­cisam” estão recor­rendo ao TFD, em detri­mento dos efe­ti­va­mente neces­si­ta­dos.

O que fazer? A Con­sti­tu­ição Fed­eral ao con­sagrar a saúde como dire­ito de todos não impõe qual­quer tipo de lim­i­tação.

O texto não admite qual­quer dúvida: “Art. 196. A saúde é dire­ito de todos e dever do Estado, garan­tido medi­ante políti­cas soci­ais e econômi­cas que visem à redução do risco de doença e de out­ros agravos e ao acesso uni­ver­sal e igual­itário às ações e serviços para sua pro­moção, pro­teção e recu­per­ação”.

Agora mesmo o STJ enten­deu que qual­quer um dos entes fed­er­a­dos podem ser aciona­dos para custear o TFD o que muito emb­ora “alivie” um pouco a situ­ação dos municí­pios, não a resolve em abso­luto, uma vez que o cidadão e mesmo o judi­ciário acha “mais perto” impor o encargo ao municí­pio.

Quando o STF sus­pendeu a apli­cação ime­di­ata do piso dos profis­sion­ais da saúde, não foi por intro­mis­são inde­v­ida (?) ou por ser con­tra o piso, mas, sim, porque as autori­dades que se debruçaram sobre o tema, leg­isla­tivo e exec­u­tivo não “desen­ro­laram o nó” do finan­cia­mento.

Vi, outro dia, falarem em des­ti­nar dois bil­hões do chamado “orça­mento secreto” para as San­tas Casas, que sofr­erão um tremendo impacto com a implan­tação do piso; mais recente, vi que falam em des­ti­nar mais dez bil­hões de reais, tam­bém do tal “orça­mento secreto” para fazer face às despe­sas.

Viram como haviam deix­ado de fora da lei o prin­ci­pal? A fonte de financiamento.

Ouvi muita “gente boa” recla­mando da suposta intro­mis­são do STF neste assunto.

Estão equiv­o­ca­dos.

A Con­sti­tu­ição tem como cláusula pétrea, inserida no artigo 5, o seguinte: “XXXV — a lei não excluirá da apre­ci­ação do Poder Judi­ciário lesão ou ameaça a direito”.

Qual­quer um que esteja sofrendo lesão ou ameaçado de vir a sofrer tem o direito/​dever de bater às por­tas do judi­ciário.

A admin­is­tração pública não é uma brin­cadeira infan­til onde as esferas ou poderes con­sti­tuí­dos pos­sam tratar seus cer­cad­in­hos como seu e ninguém “se meter”.

Quando a Con­fed­er­ação Nacional dos Municí­pios — CNM, um dos legit­i­ma­dos para tal, bus­cou o STF pleit­e­ando a sus­pen­são da lei foi con­sciente da efe­tiva difi­cul­dade que um dos des­ti­natários da lei, os municí­pios que rep­re­senta, teriam na sua imple­men­tação, sem que o leg­isla­tivo e o exec­u­tivo já des­tinem uma fonte de receita para pos­si­bil­i­tar o cumpri­mento da lei.

Devo acres­cen­tar que não são dois bil­hões de reais daqui, dez bil­hões de reais dali, que irão pos­si­bil­i­tar o cumpri­mento da lei. Não resolve.

Os municí­pios, prin­ci­pal­mente eles, pre­cisam de “receitas novas” para que pos­sam cumprir as leis ordinárias, como as leis do piso, sem com­pro­m­e­ter o lim­ite de gas­tos esta­b­ele­ci­dos pela Lei Com­ple­men­tar nº. 1012000LRF.

Sem receita nova vai-​se con­tin­uar a enx­u­gar gelo, sem sair de lugar algum.

Uma lei de piso que visa esta­b­ele­cer um piso mín­imo tanto para o setor pri­vado, quanto para o setor público e ainda con­tem­plar o ter­ceiro setor, como a rede filantrópica, pre­cisa levar em con­sid­er­ação as difi­cul­dades de cada um deles.

Uma dis­cussão tão séria como essa, pois de um lado a neces­si­dade urgente de se recon­hecer e se pagar um salário decente aos servi­dores da saúde, de outro as lim­i­tações legais e finan­ceiras de municí­pios, esta­dos e enti­dades filantrópi­cas, não com­porta levian­dades e opor­tunis­mos, como temos acom­pan­hado.

Esse pros­elit­ismo tosco, essa poli­tiquice de se querer des­gas­tar o Supremo Tri­bunal Fed­eral, inclu­sive espal­hando “fake news”, só atra­pal­ham ao invés de aju­dar.

O que os servi­dores da área da saúde pre­cisam é de um fundo con­sti­tu­cional, assemel­hado ao FUN­DEB da edu­cação, mas sem os vícios deste, que garanta o fun­ciona­mento da saúde de forma efi­ciente e o paga­mento de salários dig­nos aos seus profis­sion­ais.

Abdon C Mar­inho é advogado.

P. S. O pre­sente texto é o da sem­ana pas­sada que não saiu porque o autor estava doente.