AbdonMarinho - PRINCÍPIOS E PAIXÕES.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Domingo, 24 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

PRINCÍ­PIOS E PAIXÕES.

PRINCÍ­PIOS E PAIXÕES.

VIVE­MOS tem­pos em que as pes­soas são movi­das mais por paixões que por princí­pios. Aquela coisa, se fulano é meu amigo não tem defeitos, ainda que cometa os maiores absur­dos; se é meu inimigo ainda que não tenha defeitos, não faça nada de errado, não se con­segue enx­er­gar qual­quer mérito e a ele devem ser des­ti­na­dos os piores cas­ti­gos, ainda que para isso, se viole a lei.

No furor de desen­f­readas paixões, acabam por esque­cer o real sen­tido das coisas; de anal­isar com racional­i­dade e, pior, acabam por se vestirem de jus­ti­ceiros impiedosos.

Outro dia vi – com pesar –, uma ten­ta­tiva de lin­chamento moral prat­i­cada con­tra um dos mais lúci­dos e cor­re­tos (senão o mais para ambas) min­istros do Supremo Tri­bunal Fed­eral — STF, o min­istro Celso de Mello, tudo porque ele deferiu uma lim­i­nar para que um cidadão já con­de­nado em segunda instân­cia fosse solto e aguardasse o trân­sito em jul­gado da sen­tença penal con­de­natória (soube que tam­bém o ministro-​presidente Ricardo Lewandowski, acaba de fazer o mesmo).

O caso, em que o min­istro Celso de Melo soltou o con­de­nado, vamos recon­hecer, é dev­eras escabroso: o con­de­nado, segundo apurou a instrução crim­i­nal, matou o sócio, escon­deu o corpo e depois, ainda, foi fes­te­jar numa boate. Ape­sar de con­de­nado já em segunda instân­cia o min­istro deter­mi­nou que aguarde o trân­sito em jul­gado do processo.

Emb­ora, à luz do caso con­creto, tenha pare­cido que o min­istro agiu de forma injusta ou a fazer menoscabo da justiça, a incen­ti­var a cul­tura da impunidade, ele agiu den­tro do que enten­demos como princí­pio. Um jul­gador, muito difere de um alfa­iate. Ele, difer­ente daquele, não pode aplicar a lei con­forme o fig­urino do freguês. Se assim o fosse seria muito pior.

O min­istro votou con­tra a tese da maio­ria dos seus cole­gas que cun­haram, con­forme o caso, em processo especí­fico, a pos­si­bil­i­dade de cumpri­mento da pena já a par­tir da con­de­nação em segunda instân­cia. O entendi­mento minoritário do min­istro tem por fun­da­mento o dis­pos­i­tivo con­sti­tu­cional do artigo 5º: «LVII — ninguém será con­sid­er­ado cul­pado até o trân­sito em jul­gado de sen­tença penal con­de­natória». E, ainda, con­forme declarou logo após o jul­ga­mento do cole­giado, o fato, de 25% (vinte e cinco por) da matéria crim­i­nal que chega ao Supremo Tri­bunal Fed­eral, através de recurso próprio, ser reformada.

Logo que o Supremo decidiu a matéria (pos­si­bil­i­dade de cumpri­mento de pena a par­tir do jul­ga­mento em segundo grau) escrevi um texto dis­cor­dando da decisão. Fun­dava o texto não ape­nas no man­da­mento con­sti­tu­cional já referido, mas, sobre­tudo, na entre­vista do decano do STF. Numa nação onde a injustiça é a regra recebi diver­sos ques­tion­a­men­tos. Alguns chegaram a dizer que ape­nas uma ínfima quan­ti­dade de pes­soas recor­riam da decisão de segundo grau, uma quan­ti­dade ainda menor tinha êxito nos tri­bunais supe­ri­ores e, uma quan­ti­dade menor ainda con­seguia chegar ao STF, daí a neces­si­dade, no com­bate da impunidade, de se dec­re­tar de ime­di­ato e sem o exame de quais­quer out­ras cir­cun­stân­cias. Para os defen­sores da tese vito­riosa no Supremo parece justo que a ínfima quan­ti­dade de pes­soas que têm suas penas revis­tas ou sua sen­tença revo­gada cumpram pena (ainda que inocentes) pelo tempo que o processo trâmite e seja revisto pelas instân­cias supe­ri­ores. Afi­nal, argu­men­tam, são poucos, quase ninguém, então que paguem em nome da sociedade cansada de tanta vio­lên­cia e impunidade.

Emb­ora não dis­corde da neces­si­dade de se com­bater a impunidade – mesmo porque, entendo que ela está na raiz de todos os males –, sou diver­gente quanto à assertiva de a ínfima quan­ti­dade de recur­sos que chegam aos tri­bunais supe­ri­ores jus­ti­fi­caria o cumpri­mento ante­ci­pado, antes do trân­sito em jul­gado – emb­ora con­cor­dando com a neces­si­dade de se dar um basta na infinidade de recur­sos protelatórios.

Entendo que o encar­ce­ra­mento, ainda de um único inocente, jus­ti­fi­caria maiores caute­las nesta questão. A liber­dade é o bem mais pre­cioso que o ser humano pos­sui. Ninguém é capaz de devolver um dia per­dido no cárcere por um inocente.

Mas, as razões do meu pen­sar não funda-​se, uni­ca­mente, no estrito cumpri­mento do man­da­mento con­sti­tu­cional, ou no lev­an­ta­mento exposto pelo decano do STF sobre o número de refor­mas na matéria penal que chega ao tri­bunal. Funda-​se, sobre­tudo, no con­hec­i­mento que temos sobre o fun­ciona­mento da justiça de segundo grau, não ape­nas no Maran­hão, mas no Brasil inteiro.

Vive­mos num país onde ape­nas os ingên­uos ou tolos acred­i­tam na justiça.

A descon­fi­ança da sociedade tem uma razão palpável de ser. Ao longo dos anos temos con­vivido com a injustiça, com a dureza da lei imposta aos menos favore­ci­dos e com os inter­esses políti­cos ou pes­soais se sobre­pondo à lei. Quem não sabe disso? Quem não sabe ou, ao menos, não descon­fia, do que ocorre diante de tan­tas decisões rumor­osas? Quan­tas vezes – a exem­plo do que ocor­ria na Roma dos Césares – não assis­ti­mos à con­de­nação de um «ladrãoz­inho de gal­in­has», e no mesmo dia se absolver quem roubou mil­hões, con­forme já denun­ci­ava o Padre Antônio Vieira há três séculos?

Se o Judi­ciário, de norte a sul do país, sus­cita dúvi­das e inqui­etações, out­ras insti­tu­ições não ficam muito atrás. Outro dia – não faz muito tempo –, uma pro­mo­tora da cap­i­tal denun­ciou que estaria sendo vítima de assé­dio por parte dos seus supe­ri­ores. Segundo ela, a perseguição tinha a ver com o tra­balho que fazia, inclu­sive com denún­cias con­tra cole­gas que teriam cometido deli­tos de gravi­dade ímpar.

Vejam bem o que está dito: a pro­mo­tora acusa supe­ri­ores de persegui-​la porque ela (pro­mo­tora) estaria apu­rando (denun­ciando) crimes cometi­dos por out­ros cole­gas (pro­mo­tores), crimes graves, segundo acentuou.

As denún­cias pare­cem tão banais que ninguém aten­tou para sua gravidade.

O Min­istério Público é, nos ter­mos da Con­sti­tu­ição, insti­tu­ição per­ma­nente, essen­cial à função juris­di­cional do Estado, incumbindo-​lhe a defesa da ordem jurídica, do régime democrático e dos inter­esses soci­ais e indi­vid­u­ais indisponíveis. Mais, nos ter­mos do artigo 129 do mesmo diploma, compete-​lhe, pri­vada­mente a pro­moção da ação penal pública, na forma da lei, zelar pelo efe­tivo respeito dos Poderes Públi­cos e dos serviços de relevân­cia pública aos dire­itos asse­gu­ra­dos na Con­sti­tu­ição, além de tan­tos outros.

Como é pos­sível que uma denún­cia de tamanha gravi­dade não escan­dal­ize a sociedade, os poderes públi­cos? Como é aceitável que ganhe esse ar de naturalidade?

Noutras palavras, a pro­mo­tora disse que aquele pos­suidor do poder acu­sador faz uso do mesmo con­forme a con­veniên­cia, con­forme quem seja e que tenha cometido o delito. É isso que está dito.

Ora, quem faz vis­tas grossas aos cul­pa­dos – segundo a pro­mo­tora, de crimes graves –, o que impede de acusar e pedir con­de­nação de inocentes con­forme a con­veniên­cia? Que ajam moti­va­dos por paixões ou inter­esses escu­sos? Nada.

As paixões têm esse viés. Quem age moti­vado por elas perde a racional­i­dade e o senso do justo, aplica a lei como um alfa­iate, moldando-​a ao corpo do modelo.

Nos dias de hoje quem age com base em princí­pios, quem expõe suas ideias fun­dadas neles recebe áci­das críti­cas, recebe patrul­hamento. Lem­bro de deter­mi­nada vez em que disse ser favorável a con­strução dos hos­pi­tais e estradas lig­ando as sedes dos municí­pios. Dizia não entrar no mérito, se estavam des­viando ou não os recur­sos, mas sim, que eram obras impor­tantes para as pop­u­lações daque­les municí­pios. Recebi crit­i­cas sev­eras. Que as repeli com veemência.

Em dias mais atu­ais fui crit­i­cado por dis­cor­dar do pedido de prisão e mon­i­tora­mento feito pelo procurador-​geral da República con­tra o ex-​presidente Sar­ney e out­ros senadores. Entendi e entendo que não havia motivo jus­ti­fi­cado para tal pedido, fun­dado, basi­ca­mente, em con­ver­sas gravadas clan­des­ti­na­mente por um “dela­tor pre­ven­tivo”. O rela­tor do processo no STF recu­sou a medida extremada. Outra vez recebi críticas.

Cada vez mais, as pes­soas sen­tem difi­cul­dades em con­viver com princí­pios, estão enredadas em suas paixões, quase sem­pre (senão sem­pre) irracionais.

Abdon Mar­inho é advogado.