AbdonMarinho - Cotidiano
Bem Vindo a Pagina de Abdon Marinho, Ideias e Opiniões, Domingo, 24 de Novembro de 2024



A palavra é o instrumento irresistível da conquista da liberdade.

Escrito por Abdon Marinho

O DIA DE ANO.

Por Abdon Marinho.

SEMPRE tive curiosidade em saber como certas lembranças ficam gravadas na nossa mente. Algumas até parecem que foram grafadas a fogo. 

A curiosidade é ampliada quando tais lembranças remontam à infância mais tenra. Acredito que minhas lembranças mais antigas alcançam o primeiro ou segundo ano de minha vida. Mas, de todas, entretanto, nenhuma supera os registros daquelas relacionadas ao “dia de ano”.

Apesar de pobres, a casa era grande, muito grande, de pau a pique e chão batido (exceto os depósitos com piso de madeira), possuíam diversos quartos e depósitos onde meu pai guardava as safras de arroz, milho e feijão do seu próprio plantio ou as comprados na folha de produtores vizinhos. De um lado da casa ficava um curral onde recolhíamos o gado, ao fundo um chiqueiro de porcos e na outra lateral um flamboyant que chamávamos de “sombrião”. As galinhas eram criadas soltas no terreiro.

O dia já cedia lugar à noite e as lamparinas já estavam acessas naquele domingo.

No quarto bem simples, com paredes à altura das travessas e fechado com uma cortina, minha mãe sentia o início das contrações do seu último parto enquanto conversava com seu irmão, meu tio Praxedes. 

Não havia novidade, com cerca de trinta e seis anos já era o seu décimo parto. A parteira era a esposa de tio Antônio, o irmão mais velho do meu pai, que “pegara” todos os nascidos no povoado, exceto a mim, que nasci em um domingo e quando ela chegou já tinha nascido. 

Com o privilégio de ser um dos queridinhos da mamãe, brincava no quarto fazendo algazarra própria de crianças. Com manha fingia prender o dedo na dobradiça do cofre de meu pai para tio Praxedes ir tirar. Era um cofre de pé, cinza, com dois compartimentos, o de cima com chave e segredo numa porta grossa e dentro duas prateleiras e uma gavetinha aveludada na parte interna; a parte debaixo, com porta mais fina e trancado a chave. 

Quando meu avô decidiu com os seus filhos deixarem o Rio Grande do Norte para virem ter por essas plagas – após uma incursão de tio Pedro Calheiro, seu filho caçula –, trouxe toda a família (dez filhos, noras, genros e já alguns netos, inclusive, casados) e ainda alguns amigos. Assentaram-se no Lugar depois denominado Centro Novo entre os povoados Paciência (Governador Archer) e Pedrosa (Gonçalves Dias), que ainda não eram emancipados quando chegaram. Tio Praxedes, irmão de minha mãe era casado com tia Josefa, irmã de meu pai. 

Minha mãe assistindo aquelas  travessuras no quarto, de sua cama, dizia ao irmão: — meu filho será um doutor para cuidar dos irmãos dele. 

Não tínhamos relógio ou noção do tempo, mas lembro que fiquei por lá até a hora  alguém me levar para minha rede no quarto da minha avó, mãe de meu pai, a quem chamávamos de “titia”. D. Mariinha  era uma senhorinha pequena de cabelos muito alvos e olhos azuis-celestes. Ainda lembro que era como se olhássemos dois pedaços do céu. Fora mãe de dez filhos – além das perdas –, alguns já tinham partido como tia Zulmira que morrera antes do meu nascimento e dela só sabia de ouvir contar;  e tia Josefa, que morrera de parto cerca de um ano antes. 

Ainda hoje, no cemitério do nosso povoado, sobre a sepultura dela existe uma cruz grande e sobre o seu braço uma cruzinha menor lembrando o bebê que morreu com ela. 

O resto da noite – já não sei se foram sonhos ou delírios –, ouvia/sentia os movimentos de pessoas dentro casa, entrando ou saindo, murmúrios.

As lembranças nítidas já são do dia seguinte. A casa inteira tomada pelo clamor, o choro alto do meu pai, minha avó, de todos os filhos, tias, tios, primos, parentes próximos, amigos. A comunidade inteira. Todos em prantos, inconsoláveis: D. Neuza tinha morrido. Tivera uma eclâmpsia e não resistira. Morrera no décimo parto.  

A outra lembrança é da minha mãe já sendo velada em uma cama na sala. Minha irmã então com dois anos sendo cuidada por alguém, assim como o meu irmão recém-nascido. 

Eu com meus cinco anos estava perdido em meio a toda aquela confusão. 

O que aconteceu? Me perguntava assustado. Não o entendia nada do que estava acontecendo, não sabia que dali pra frente não teríamos mais nossa mãe e que sentiríamos todas as dores decorrentes deste fato. 

Era o primeiro dia da nossa orfandade, a partir do qual viveríamos como Deus cria batatas na beira do rio. 

Anos depois –  ainda criança/adolescente –, achei uma estranha semelhança entre a nossa tragédia pessoal e a parte inicial da obra de José Lins do Rego, “Menino de Engenho”, de 1932, como vida fosse uma cruel imitação da arte. 

Durante anos não consegui passar das páginas iniciais. 

Aquele dia passou a ser, para todos da nossa família, o “dia de ano”, uma data em que acenderíamos velas e rezamos para lembrar o passamento de nossa mãe. A data inicial: 13 de agosto de 1973, segunda-feira. Data a partir da qual nada mais seria como antes. 

Esta é a minha lembrança mais dolorosa. Nestes anos todos nunca a esqueci um dia sequer. 

Abdon Marinho é advogado.

(Texto extraído do livro “Memórias e outras Crônicas”, de minha autoria, que, talvez, seja lançado algum dia).