AbdonMarinho - Loucura pandêmica
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Domingo, 24 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Lou­cura pandêmica

LOUCURA PANDÊMICA.

Por Abdon Marinho.

ALGUÉM já disse – não me recordo se ouvi, li ou imag­inei –, que toda cidadez­inha do inte­rior que se preze pre­cisa ter seus tipos fol­clóri­cos: o bêbado ofi­cial; o doido ofi­cial; as beatas ofi­ci­ais, e por aí vai.

Quando deixei o povoado onde nasci, lá pelo final dos anos setenta, fui para Gov­er­nador Archer. Muito novo, não lem­bro bem de inten­si­ficar estes tipos por lá, talvez, ape­nas as irmãs Leonel se encaixe no perfil.

O mesmo não acon­te­ceu quando mudei-​me para Gonçalves Dias, onde fiquei até o iní­cio de 1985.

Das min­has lem­branças daquele começo dos anos oitenta, pelo menos um dos tipos típi­cos tín­hamos de forma inques­tionável: o doido oficial.

O nosso doido ofi­cial naquele tempo era o Seu Romeiro, assim chamado, creio eu, por sua devoção ao Padre Cícero – nunca soube o seu nome de batismo, só o chamá­va­mos de Romeiro, como se fosse nome próprio.

Era um sen­horz­inho baixo, de idade indefinida, sem­pre bem vestido, de calças com­pri­das, sap­atos e camisa manga longa, diver­sos rosários no pescoço.

Andava sem­pre com uma valise onde car­regava papéis diver­sos e um cajado quase da mesma altura que ele, ador­nado com diver­sas fitas e out­ras bugingangas.

A sua lou­cura era apresentar-​se como o homem mais rico do mundo, sua for­tuna não era cal­cu­lada em mil­hões ou bil­hões, mas em «quadrilhões» ou “quin­quil­hões”. Era din­heiro, ouro, jóias, pro­priedades, tudo incal­culável pelos comuns mortais.

Saia de casa cedo e pas­sava o dia andando a cidade, ia aos lugares mais dis­tantes, par­ava aqui e ali, mas o resto do tempo per­cor­rendo a cidade, dando razão ao dito pop­u­lar: “andava mais que juízo de doido”.

Nas suas paradas, se alguém lhe falava de alguma neces­si­dade, ele abria a valise, pegava um pedaço de papel pre­vi­a­mente for­matado e fazia um cheque de alguns mil­hões para a pes­soa. Din­heiro, para ele, não era problema.

Suas “cis­mas» eram se alguém ques­tionasse sua riqueza, e outra, que não sei se moti­vada por racismo, con­tra Pelé – ele mesmo, o astro do futebol.

Ai de alguém dizer que o Pelé era mais rico do que ele. Avançava sobre o atre­v­ido com seu cajado.

Fora isso tirava os dias sem ofender ninguém fazendo cál­cu­los men­tais de sua for­tuna imaginária.

Bas­tava que ninguém se “tro­casse” com ele ou açu­lasse suas con­trariedades que tudo estaria bem.

Nestes dias de quar­entena, por conta da pan­demia do coro­n­avírus – e tam­bém por causa dela –, tenho refletido sobre a lou­cura, sobre­tudo, sobre a lou­cura pandêmica que toma conta do país.

Aqui, difer­ente da lou­cura do seu Romeiro, ela causa estra­gos, provoca mortes e danos à vida das pessoas.

O país, cap­i­taneado por seu pres­i­dente – tendo diver­sos gov­er­nadores como coad­ju­vantes –, vive um clima de lou­cura pandêmica.

Os cidadãos, não temos ape­nas que enfrentar a pan­demia do coro­n­avírus, somos obri­ga­dos a con­viver a lou­cura e a insen­satez dos gov­er­nantes.

Em tex­tos ante­ri­ores cobrei sen­satez e racional­i­dade. Até aqui, da parte das pes­soas que detêm o poder político emanado das urnas, temos visto o con­trário.

Em qual­quer lugar, em qual­quer tempo, diante de uma pan­demia, vemos as autori­dades, ainda que momen­tanea­mente, se darem as mãos para enfrentar um inimigo comum – e maior.

Aqui, assis­ti­mos que a pan­demia – que já ceifou mil­hares de vidas ao redor do mundo e algu­mas cen­tena no nosso país –, se tornou mais um pano de fundo e/​ou com­bustível para a dis­puta entre aquele que está na presidên­cia da República e os diver­sos pos­tu­lantes que son­ham em chegar lá.

O com­por­ta­mento, igual­mente hor­ro­roso, do pres­i­dente da República e dos “governadores-​candidatos”, enver­gonha os cidadãos de bem e não encon­tra para­lelo nas demais espé­cies da natureza.

O que vemos na natureza é que quanto há um incên­dio na flo­resta predadores e pre­sas não param para resolverem suas “con­tendas”, antes, têm a com­preen­são de que o fogo é o inimigo comum, e cor­rem lado a lado na busca da sal­vação.

Os “humanos” brasileiros não têm essa com­preen­são, em meio a uma das maiores tragé­dias a afe­tar a humanidade, se achando pro­te­gi­dos por suas posses ou pela certeza que serão bem aten­di­dos caso adoeçam, tripu­diam da dor daque­les que estão per­dendo seus entes queri­dos com uma dis­puta insana.

Vemos até governador-​candidato obcecado pelo pres­i­dente – tal qual o seu Romeiro era pelo Pelé –, se ocu­pando em con­tar os mor­tos (e, talvez torcendo por seu aumento) que hipoteti­ca­mente aman­hece­riam na porta do pres­i­dente da República.

O maior inimigo da sociedade brasileira no momento não é ape­nas o coro­n­avírus é, tam­bém, esse com­por­ta­mento rasteiro das “autori­dades”.

Em plena crise, ao invés de se enten­derem, gov­ernistas e oposi­cionistas, se ali­men­tando da própria medioc­ridade, pas­sam os dias tro­cando insul­tos através das redes soci­ais e dos demais veícu­los de comu­ni­cação.

Nada con­tra que se odeiem – e que matem, se assim quis­erem –, mas deixem isso para o futuro, para depois da pan­demia. Podemos, até, defender uma lei que per­mita essa gente a resolver seus con­fli­tos através de due­los públicos.

Já que não con­seguem ser civ­i­liza­dos nem mesmo durante uma pan­demia, a lin­guagem das armas talvez con­sigam entender.

Vejam, nen­hum dos lados, que infe­liz­mente ten­tam tirar div­i­den­dos políti­cos em cima de uma tragé­dia humana de tamanha dimen­são, tem razão e os seus rep­re­sen­tantes deviam ter vergonha.

O com­por­ta­mento destes políti­cos é digno de vergonha.

Assim como enver­gonha a raça humana todos aque­les que, nas rebar­bas, ten­tam tirar alguma van­tagem de tal tragé­dia.

Será que temos entre as nos­sas autori­dades só a escória da raça humana?

Porém, diante da tragé­dia, vejo com a ale­gria que a maio­ria da sociedade brasileira tem mais lucidez que os seus gov­er­nantes.

Uma pesquisa da Folha de São Paulo, divul­gada neste domingo, rev­ela que 59% (cinquenta e nove por cento) são con­tra uma renún­cia do pres­i­dente con­tra 37% (trinta e sete por cento) que são favoráveis à renún­cia, con­forme defend­eram, em carta alguns par­tidos de oposição, e, em out­ros veícu­los de comu­ni­cação, diver­sas lid­er­anças políti­cas, prin­ci­pal­mente, alguns que ten­tam tirar vantagens.

Não é que a sociedade brasileira, em per­centual tão ele­vado apoie, o pres­i­dente ou mesmo apoie o seu desem­penho diante da crise provo­cada pela pan­demia. Nada disso, recen­te­mente, outra pesquisa disse que ape­nas 35% (trinta e cinco por cento) aprovava o seu desem­penho con­tra 75% (setenta e cinco por cento) que aprovava o desem­penho do Min­istério da Saúde do seu governo.

O que a sociedade brasileira já perce­beu – e que a oposição e seus líderes teimam em bater cabeça –, é que este não é um momento para se aumen­tar as divisões inter­nas do país.

A dis­puta não é entre gov­ernistas e oposi­cionistas, é con­tra uma pan­demia, é con­tra um vírus que ameaça diz­imar – e já vem fazendo isso –, um número sig­ni­fica­tivo de vidas humanas.

Não é a primeira vez – e, infe­liz­mente não será a última –, que enfrenta­mos uma pan­demia. Desta vez, difer­ente, das vezes ante­ri­ores, esta­mos bem mais prepara­dos.

Foi uma questão de dias entre o aparec­i­mento da “doença” e o sequen­ci­a­mento genético do vírus e o iní­cio de diver­sos méto­dos de trata­mento.

Emb­ora insip­i­entes já exis­tem diver­sos estu­dos apon­tando um rumo.

A nossa luta, a luta da sociedade, é para ter­mos o menor número de víti­mas pos­sível; é para não sobre­car­regar­mos o sis­tema de saúde, invi­a­bi­lizando o atendi­mento e provo­cando a con­t­a­m­i­nação, sobre­tudo, dos val­orosos brasileiros que estão na linha de frente desta guerra.

Enquanto faze­mos a nossa parte, o enfrenta­mento da pan­demia exige, método, dis­ci­plina e comando.

Aliás, SUS sig­nifica jus­ta­mente isso: Sis­tema Único de Saúde.

Não ire­mos muito longe e de nada terá valido os esforços da sociedade, se as “autori­dades” insi­s­tirem e puxar cada um para um lado ou fazer da sua maneira.

O momento é de ouvir a ciên­cia. É ela nossa mel­hor ali­ada.

Não imag­inem que alguém vai lá e pegar o vírus na unha. Não é assim que funciona.

Espero que depois de der­ro­tar­mos o vírus a sociedade tome cor­agem para extir­par outra doença que assola o país – de forma tão ou mais danosa que o próprio vírus –, essa corja de políti­cos opor­tunistas e ine­scrupu­losos que, sequer, sen­tem con­strang­i­mento em explo­rar as tragé­dias que ceifam vidas humanas.

Abdon Mar­inho é advo­gado.