AbdonMarinho - DE ULYSSES A TEORI: A TRAGÉDIA ÉTICA DA REPÚBLICA BRASILEIRA.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Domingo, 24 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

DE ULYSSES A TEORI: A TRAGÉ­DIA ÉTICA DA REPÚBLICA BRASILEIRA.

DE ULYSSES A TEORI: A TRAGÉ­DIA ÉTICA DA REPÚBLICA BRASILEIRA.
NUMA tarde, ainda naquela fatídica sem­ana de out­ubro de 1992, o jor­nal­ista Ademário Cav­al­cante entrou na minha sala na Assem­bleia Leg­isla­tiva, na Rua do Egito e, antes mesmo dos cumpri­men­tos ini­ci­ais foi logo dizendo: – Que ver­gonha! Como pode um homem da estatura do Dr. Ulysses Guimarães, com uma história inve­jável, mor­rer enquanto voava «de favor» no helicóptero de um empresário, não é Abdon?
Naque­les anos era asses­sor do dep­utado estad­ual Juarez Medeiros (PSB/​MA), e, emb­ora fosse um menino de vinte e poucos anos, rece­bia, quase diari­a­mente, a maio­ria dos jor­nal­is­tas que faziam a cober­tura das ativi­dades do par­la­mento. Ademário Cav­al­cante era um dos mais pre­sentes, ele já ido nos anos e com vasta exper­iên­cia no jor­nal­ismo, fora secretário de Estado de Comu­ni­cação no gov­erno Cafeteira, era edi­to­ri­al­ista do Jor­nal Pequeno e morava/​mora na Avenida Beira Mar. Assim, quase que todos os dias, após a sessão ou quando subia para o jor­nal, pas­sava no gabi­nete para um dedo de prosa. Emb­ora, para os padrões de hoje, fosse pouco mais que um ado­les­cente, ele gostava de con­ver­sar comigo e eu, pelo meu lado de apren­der com as histórias que con­tava. Muitas das vezes via as ideias par­til­hadas no dia ante­rior virar edi­to­r­ial no JP no dia seguinte. Me diver­tia quando algum crítico chegava e per­gun­tava: – Já leste o “ade­mar­ial» de hoje? Chamavam o edi­to­r­ial de “ade­mar­ial” por serem lon­gos e, quase sem­pre, em lin­guagem clás­sica. Vez por outra, algum amigo daquele tempo chama meus arti­gos de “ade­mar­ial”. Gosto da lem­brança e do apren­dizado daque­les dias.
Durante os dois anos seguintes – tempo que ainda pas­sei na ALEMA –, Ademário, vez ou outra me fazia lem­brar do desvio ético do Dr. Ulysses, pes­soa que por sua história de vida, na luta por uma nação mais democrática e justa, que enfren­tou os desafios da anti-​candidatura, que impediu a rup­tura da ordem democrática por ocasião da morte de Tan­credo Neves, que pre­sidiu a Assem­bleia Nacional Con­sti­tu­inte, nos legando a Con­sti­tu­ição pos­sível, segundo suas próprias palavras, mas que nem por isso deixou de ser cidadão, mor­rera enquanto se servia de “mimo» de um empresário num voo com a esposa e uma casal de ami­gos.
Quase um quarto de século sep­ara o perec­i­mento de Ulysses Guimarães da morte do min­istro do STF, Teori Zavascki, igual­mente num voo de favor. Uma nódoa indelével numa car­reira jurídica inques­tionável. Tão inques­tionável que ninguém, sequer lem­brou de ques­tionar tal falha ética. Muito pelo con­trário, foi saudado e ref­er­en­ci­ado por todos os tri­bunais Brasil a fora por ocasião do iní­cio do ano judi­ciário.
Mas, vejamos, se já não fazia sen­tido há 25 anos que um dep­utado recebesse, de quem quer que fosse o “mimo” de um voo, como igno­rar o fato de um min­istro do STF, num momento em que se clama tanto por ética, transparên­cia e inde­pendên­cia, receba um favor de igual natureza? Será que em 1992 o apuro ético, talvez na esteira da cam­panha pelo impeach­ment de Col­lor, estava mais pre­sente? É pos­sível.
Na ver­dade a rel­a­tiviza­ção ética no país, no atual momento chega até ser com­preen­sível – aceitável jamais. Como criar um cav­alo de batalha por conta de um voo quando se sabe que as maiores fig­uras públi­cas no Brasil em todos os poderes são apon­ta­dos – muitos com provas cabais –, como líderes de quadrilhas orga­ni­zadas que tin­ham como alvo prin­ci­pal os cofres públi­cos?
Um voo seria o de menos quanto se sabe que grandes empre­sas man­tinham «depar­ta­mento de propinas», assim mesmo, insti­tu­cional­izado, encar­regado de dis­tribuir van­ta­gens inde­v­i­das aos políti­cos; quando se sabe que de vereador a pres­i­dente da República se lam­buzaram em favores inde­v­i­dos; quando min­istros de tri­bunais supe­ri­ores são apon­ta­dos como não isen­tos para jul­garem esta ou aquela causa por pos­suir amizades entre os que serão jul­ga­dos.
Quase um quarto século sep­a­ram a morte Ulysses e Teori, o mesmo tempo do impeach­ment de Col­lor do que apeou a sen­hora Dilma do poder, a leitura que faze­mos – pelo menos a princí­pio –, é que a mis­éria ética da República só aumen­tou.
Os próprios fatos respon­sáveis pelo imped­i­mento do então pres­i­dente, pare­cem meras con­tra­venções diante da avalanche de provas já descober­tas (e a desco­brir) que pesam con­tra seus suces­sores – e con­tra ele próprio, que, ao que parece, apri­morou o gosto e a gula pelos malfeitos –, como dito, autên­ti­cas quadrilhas den­tro da máquina pública a desviar os recur­sos que dev­e­riam ser investi­dos na saúde, na edu­cação, na infraestru­tura do país.
O pior de tudo isso é que fato de ter­mos os maiores empresários e políti­cos enfrentando agruras do cárcere ou bem próx­imo disso, de pouco ou nada tem valido para mod­i­ficar os cos­tumes. Os malfeitos se suce­dem indifer­entes as con­se­quên­cias judi­ci­ais que poderão advir. Como se ninguém acred­i­tasse no alcance da lei. Ou, pas­mem, cer­tos do império da impunidade.
A mis­éria ética do país é rev­e­lado em tudo, em toda sua grandeza. Mesmo na forma ide­ol­o­gizada como a sociedade encara e absorve a cor­rupção, acei­tando ou negando con­forme suas próprias con­veniên­cias. É assim que o Brasil afunda.
Um voo inde­v­ido levou Ulysses. Um voo inde­v­ido levou Teori. A tragé­dia ética ficou. É de todo nação.
Abdon Mar­inho é advogado.