AbdonMarinho - Um pântano das arábias.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Um pân­tano das arábias.

UM PÂN­TANO DAS ARÁBIAS.

Por Abdon C. Marinho*.

SUS­PEITO – ape­nas sus­peito –, que mesmo os devo­tos mais ingên­uos do ex-​presidente já perce­beram que mito, em sen­tido fig­u­rado é “uma pes­soa ou um fato cuja existên­cia, pre­sente na imag­i­nação das pes­soas, não pode ser com­pro­vada; ficção”. É dizer, aquela pes­soa que a despeito de toda a vida pre­gressa foi “con­struída” como um cidadão de bem, bom pai de família, patri­ota, seguidor das leis e defen­sor da ética, efe­ti­va­mente é um mito, ou seja, não existe, é uma ficção.

Na história da nossa tão vilipen­di­ada República, não me recordo de nen­hum episó­dio envol­vendo um pres­i­dente no exer­cí­cio do cargo com con­tra­bando de jóias, com a uti­liza­ção da estru­tura pública, de Estado, para prática de crimes em série con­tra a nação brasileira.

Acho que nem mesmo a notória presidên­cia de Col­lor de Melo, com toda sua “lou­cura” chegou a tanto.

Inimag­inável que os generais-​presidentes, na longa noite da ditadura mil­i­tar que durou 21 anos, admi­tis­sem à incor­po­ração ao patrimônio pes­soal, um pre­sente dado por alguma nação ao pres­i­dente da república.

Há um episó­dio bem ilus­tra­tivo ocor­rido nos fins dos anos setenta, em que o penúl­timo general-​presidente, Ernesto Geisel, tomou con­hec­i­mento que um irmão seu rece­bera de pre­sente um veículo fusca de algum empre­it­eiro “doido” para agradar o poder.

O general-​presidente chamou-​o as falas: — e esse carro?

O irmão foi logo se expli­cando: — olha, foi um pre­sente, não pedi, não fiz nada por conta disso … mas se você quiser eu devolvo ime­di­ata­mente.

O general-​presidente: — que você vai devolver é algo que não se dis­cute. O que esta­mos tratando aqui é se você será preso ou não.

Vejam, um fusca, lá pelos fins dos anos setenta, dev­e­ria valer o cor­re­spon­dente hoje a 50 mil reais.

Não faz muito tempo a imprensa noti­ciou que o caçula do pres­i­dente gan­hara um veículo de uma marca qual­quer de uma empresa que tinha inter­esses em realizar negó­cios com o gov­erno pai, fun­cio­nando o filho como um “abri­dor de por­tas” nos min­istérios. Além do carro sabes de diver­sas out­ras van­ta­gens inde­v­i­das, divul­gadas à exaustão ou, de tão banais, igno­radas.

Não tive­mos notí­cias do pai-​presidente chamando o filho ou os fil­hos para dizer-​lhes que tais com­por­ta­men­tos eram incom­patíveis com o decoro do cargo que o pai ocu­pava.

São out­ras réguas a medi­rem o caráter e o decoro.

Meu pai, com sua sabedo­ria própria dos anal­fa­betos, cos­tu­mava dizer que só podíamos dar aquilo que tín­hamos.

Um pai sem moral não pode ensi­nar ou cobrar bons exem­p­los dos fil­hos.

Imag­ino que o gen­eral Geisel – aquele que deter­mi­nou a devolução ime­di­ata do pre­sente do irmão e ficou em dúvida dev­e­ria trancafia-​lo na prisão –, esteja a retorcer-​se no túmulo ao tomar con­hec­i­mento, do além, do caso de um ex-​capitão das forças armadas que chegou à presidên­cia da república e que rece­beu pre­sentes de ele­vadís­simo valor e, muito pior que isso, fez uso dos mil­itares que serviam a si e ao gov­erno para “con­tra­ban­dear” tais pre­sentes para o solo nacional, sem o paga­mento dev­ido dos trib­u­tos.

No caso em tela, o papel dos mil­itares brasileiros foi servir de “mulas” ao con­tra­bando.

Que triste papel.

O gen­eral deve perguntar-​se como con­seguiram chegar a tamanha degradação. Sim, as pes­soas que tiveram boa for­mação têm difi­cul­dades para come­ter ilíc­i­tos. Elas sabem que fazer a dis­tinção entre o certo é o errado.

No episó­dio dos pre­sentes ofer­ta­dos pelo dita­dor sau­dita, o almi­rante que chefi­ava à del­e­gação os rece­beu e, segundo o próprio, não procurou saber o que tinha nos pacotes. Os dis­tribuiu entre os mem­bros da del­e­gação que o acom­pan­hava para que os mes­mos os fizesse chegar ao des­tino: as mãos do pres­i­dente.

Um dos pre­sentes, no valor de quase meio mil­hão, chegou ao des­tino se se encon­tra com o pres­i­dente; o segundo foi apreen­dido pela alfândega.

O almi­rante das Forças Armadas, rece­beu os pacotes com os supos­tos pre­sentes e não per­gun­tou o que se tratava ou pediu qual­quer doc­u­men­tação para que apre­sen­tasse as autori­dades alfan­degárias brasileiras ou mesmo sau­di­tas, caso fosse per­gun­tado.

E, isso porque vin­ham em um voo de car­reira.

Ape­sar disso, o almi­rante não teve curiosi­dade ou procurou por alguma forma cumprir seu papel. E se fos­sem pacotes com dro­gas? E se fosse algum artefato radioa­t­ivo? Ou um corpo humano desmem­brado? Não deram sum­iço a um jor­nal­ista fazendo sumir seu corpo?

O almi­rante, sim­ples­mente, foi para o hotel e dis­tribuiu entre seus acom­pan­hantes, tam­bém mil­itares, os pacotes para que chegassem ao pres­i­dente.

Chegando ao Brasil, no aero­porto inter­na­cional, a comi­tiva, emb­ora tendo rece­bido pre­sentes que “descon­heciam o con­teúdo” não foi ori­en­tada a pas­sar pelo corre­dor dos que tem algo a declarar, mas sim, pelo con­trário, foi ori­en­tada a pas­sar pelo corre­dor do “nada a declarar”.

Pois bem, mas tendo um dos mem­bros da comi­tiva sido retido para ver­i­fi­cação da bagagem e se con­statando o valiosís­simo pre­sente, mais de 16 mil­hões de reais, com cer­ti­fi­cado de famosa joal­he­ria, o almi­rante ficou sabendo do que se tratava, mas, ao invés de infor­mar a alfân­dega que outro pacote con­tendo idên­tico pre­sente, ou chamado o outro inte­grante da comi­tiva que con­seguiu pas­sar sem ser molestado, nada disse ou fez, pelo con­trário, ten­tou foi lib­erar o pacote apreen­dido dizendo tratar-​se de pre­sente para a primeira-​dama.

Ora, um almi­rante, como sól­ida for­mação mil­i­tar e insti­tu­cional, diante de tal situ­ação não sabia que o seu com­pro­misso com a pátria era fazer o certo? Não sabia que era o caso de se aplicar o artigo 142 da Con­sti­tu­ição Fed­eral? Não con­hecem o artigo 142 de cor e salteado?

Ora, o artigo 142 diz que: “Forças Armadas, con­sti­tuí­das pela Mar­inha, pelo Exército e pela Aeronáu­tica, são insti­tu­ições nacionais per­ma­nentes e reg­u­lares, orga­ni­zadas com base na hier­ar­quia e na dis­ci­plina, sob a autori­dade suprema do Pres­i­dente da República, e destinam-​se à defesa da Pátria, à garan­tia dos poderes con­sti­tu­cionais e, por ini­cia­tiva de qual­quer destes, da lei e da ordem”.

Ao tomar con­hec­i­mento que nas baga­gens que estavam sob sua autori­dade con­tin­ham pre­sentes de alto valor e que dev­e­riam ser declar­a­dos à alfân­dega para incor­po­ração ao patrimônio nacional, não dev­e­ria ter chamado o outro inte­grante para que pas­sasse pela a alfân­dega e declarasse o outro pre­sente? Esse não é o com­por­ta­mento que se espera de alguém for­mado na mis­são de defender a pátria?

Pelo com­por­ta­mento demon­strado no episó­dio, sou ten­tado a acred­i­tar que o único lamento que deve ter exis­tido foi pelo fato da alfân­dega ter apreen­dido o pacote de maior valor (16 mil­hões) e não o outro avali­ado em meio mil­hão de reais.

O almi­rante Taman­daré deve ser outro que estar a revolver-​se no túmulo.

Na hora que o almi­rante e seus sub­or­di­na­dos mil­itares sou­beram o que con­tin­ham os pacotes e que acima de mil dólares dev­e­riam declarar e pagar o imposto ou preencher a guia de que per­tence­riam os bens a união e não fiz­eram isso, imag­ino que ten­ham se “desin­vesti­dos” do papel de defen­sores da pátria para investirem-​se no papel de con­tra­ban­dis­tas.

O pior estaria por vir. Com­pro­vando o inter­esse em apropriar-​se dos pre­sentes – pois se fosse para incor­po­rar ao patrimônio da união bas­taria preencher a guia própria, inclu­sive em relação ao outro “pre­sente” que entrou de forma clan­des­tina –, as maiores autori­dades do país, pres­i­dente da república, min­istros de Estado, pas­saram quase dois anos ten­tando desem­baraçar o con­tra­bando na base da pressão, sem pagar os impos­tos e sem preencher a guia de que o bem per­tence­ria a união, sendo que a última “investida” con­tra a alfân­dega deu-​se na antevéspera do ex-​presidente “fugir” do país.

Um fato rel­e­vante – não sei se ver­dadeiro –, que os envolvi­dos neste pân­tano chegaram a solic­i­tar que o “pre­sentes” apreen­di­dos fos­sem devolvi­dos ao doador.

Como assim? Não era mais fácil só incor­po­rar ao patrimônio da união? Ou a ideia de devolvê-​los seria para rece­ber por outra forma e em caráter pessoal?

Temos um pân­tano das arábias. Com diver­sas autori­dades do país aten­tando, de forma ver­gonhosa, con­tra os inter­esses nacionais.

Uma der­radeira per­gunta, para evi­tar qual­quer ques­tion­a­mento sobre a quem per­tence os pre­sentes apreen­di­dos se faz necessária: se o ex-​presidente não fosse o pres­i­dente no momento da doação, mas sim, um obscuro dep­utado escon­dido no fundão da Câmara dos Dep­uta­dos, ele rece­be­ria os pre­sentes de tamanha monta?

Se você acha que não então você sabe que os pre­sentes foram dados ao “pres­i­dente” e não a pes­soa e, por isso mesmo, perte­cem ao país.

O que ten­taram fazer, e feliz­mente não con­seguiram, foi pegar na “mão grande” algo que não lhes per­ten­ciam.

O código penal brasileiro deve ter alguma tipificação.

Cer­ta­mente, voltare­mos ao assunto.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.