O SORVETE E A LITURGIA DA MENTIRA.
ALGUÉM me manda um artigo supostamente escrito pelo ex-presidente José Sarney, intitulado “Governo Sorvete”. Comecei a ler e, antes mesmo de terminar, apesar de não ser longo, fui ao site do escritor e político certificar-me da autoria.
No seu site, que divide em duas partes: o escritor e o político, está, de fato, o texto, que devo dizer não faz justiça a nenhum dos dois, nem ao escritor membro da Academia Brasileira de Letras, nem ao político, que foi de deputado a Presidente da República.
O escritor produziu uma ficção meio ridícula e o político um texto de uma politicalha atroz que já se esperava superada nos dias atuais.
O ex-presidente que já foi tudo que sonhou – e até além dos sonhos –, afinal, um político do interior do Maranhão que chega à presidência da República, tendo antes sido deputado, senador, não é para qualquer um – e ele chegou lá –, e depois ainda foi senador por mais 24 anos pelo estado do Amapá, sendo, até hoje, respeitado como um dos mais argutos políticos brasileiros, poderia se dar ao respeito de não escrever ou assinar qualquer coisa que lhes põem as mãos.
Não que o ex-presidente nunca tenha sido capaz de escrever ou até fazer coisas bem piores na luta pelo poder.
A ele, foi e é atribuída uma das mais torpes obras de ficção política já criadas no Maranhão: a farsa da suposta morte de Reis Pacheco, cuja a autoria imputou, igualmente, num artigo, ao adversário de então, o candidato ao governo Cafeteira, no longínquo ano de 1994.
Aquela trama de ficção consistiu em forjar a morte de um cidadão que tivera participação – através de um acidente de trânsito – na morte do conselheiro Hilton Rodrigues, sogro de Cafeteira.
Como, simplesmente, não daria certo dizer tal absurdo, a obra ficcional “criou” um irmão para Reis Pacheco, um personagem chamado Anacleto, que, através de um advogado do Ceará, denunciou que o senador da República, Cafeteira, ao Supremo Tribunal Federal - STF, como mandante da suposta morte do irmão. Quanta criatividade e ousadia.
Às vésperas do pleito o autor da ficção escreve um artigo “Liberdade e Reis Pacheco” – em determinada passagem do texto, se não me falha a memória, chega a dizer que Cafeteira, no velório do sogro, teria lhe confessado o desejo de ver morto o causador do acidente –, atribuindo ao adversário a morte de Reis Pacheco.
A farsa só foi desbaratada, após investigação rápida empreendida pelos deputados Juarez Medeiros e Aderson Lago, poucos dias antes daquele pleito quando, pelas dificuldades de comunicação de então e a sabotagem, como falta de energia em quase todo o interior e mesmo falta de sinal de televisão no horário da propaganda eleitoral de rádio e televisão, impediu que fosse reposta a verdade: Cafeteira nunca mandara matar ninguém, Reis Pacheco estava “vivinho da silva”, morando no Amapá, e o tal irmão Anacleto não existia.
Acredito que quem escreve, sobretudo, quem tem a honra de dizer-se escritor – e que já foi tudo que quis na vida –, tem certos deveres éticos e o compromisso indelével com a verdade. Aliás, como dizia o próprio ex-presidente: tem que respeitar a liturgia do cargo – e do encargo.
Já vivendo o seu outono, o ex-presidente e escritor, deveria zelar um pouco mais por sua biografia, a fim de evitar que as torpezas praticadas na ânsia desmedida pelo poder se sobressaíam mais que as qualidades que, acredita-se, possa ter. Afinal, todos, ao menos para os seus, têm algumas qualidades.
Ao escrever o texto “Governo Sorvete”, talvez numa tentativa de ironizar o atual governador, acaba por arranhar a própria biografia.
Não se faz ironias ou se escreve sobre assuntos tão sérios sem tomar por base argumentos reais. A falta desse cuidado, acaba, infelizmente por igualar, um escritor que já teve até a honra de presidir o Brasil a um destes venais blogueiros capazes de alugar a pena e vender a consciência por qualquer trocado.
Embora estivesse viajando por ocasião da deflagração da Operação Pegadores (gostei demais deste apelido pela criatividade), entendi, desde o primeiro momento, que o governo estadual pagara por algo a uma empresa que, no passado, fora uma sorveteria. Entendi assim.
A história de que estavam pagando procedimentos médicos-hospitalares a uma sorveteria ou pagando por sorvete, picolés ou casquinhas, já foi exercício criativo daqueles que se ocuparam de explorar o episódio politicamente.
Depois, os próprios governistas, apanhados com as calças nas mãos por contas de suas estripulias pouco ortodoxas, acabaram usando a tal versão para tentar desmoralizar a operação policial, colocando em dúvida todo um trabalho realizado por agentes policiais, integrantes do Ministério Público Federal da Controladoria Geral da União e do Poder Judiciário.
Os fatos apurados até aqui, são graves e merecem rigorosos esclarecimentos por partes dos atores implicados, temos mais de uma dezena de pessoas presas provisoriamente, sendo execrados publicamente, temos denúncias de que os recursos públicos da saúde estavam sendo usados para pagamentos de inúmeros apaniguados e que, serviam, inclusive, para pagamentos de pensões alimentícias e de “Bolsa Quenga” por alguns altos dignatários do poder. Isso é sério, muito sério, não comporta gracejos ou gracinhas.
Se o texto do ex-presidente pretendeu ser irônico, deveria antes de tudo, cercar-se da verdade para não fazer coro aos que querem, com informações falsas, prejudicar e achincalhar o trabalho, que se quer acreditar seja sério e desprovido de qualquer outra motivação que não seja zelo pela coisa pública e a verdade real.
Os fatos narrados na investigação são coisas bastante sérias, repito, não havendo lugar para ironias de mau gosto como a história do “sorvete de coco ou cocô” ou de que o tratamento dos pacientes que agonizam nos hospitais estaduais, consiste na distribuição de picolés, casquinhas ou outros ingredientes.
Que falta de respeito com os enfermos, Dr. Sarney.
Ao fazer ironias ficcionais sem graça e gosto duvidoso, tendo como questão de fundo informações desprovidas de verdade, o ex-presidente presta um desserviço não só as investigações mas à boa literatura maranhense onde se destacaram nacionalmente figuras como Gonçalves Dias, os irmãos Azevedo, Josué Montelo, João Lisboa, Ferreira Gullar, e tantos outros.
Se tentou fazer graça com assunto de tamanha gravidade não conseguiu mais que sorriso amarelo e chocho, indigno de valer um sorvete, este, de verdade.
Abdon Marinho é advogado.
PS. O texto do ex-presidente você ler em www.josesarney.org/