AbdonMarinho - O PASSADO QUE TEIMA EM NÃO PASSAR.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Domingo, 19 de Maio de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

O PAS­SADO QUE TEIMA EM NÃO PASSAR.

O PAS­SADO QUE TEIMA EM NÃO PAS­SAR.

Por Abdon Marinho.

HAVIA prometido não me envolver nesta intem­pes­tiva dis­cussão sobre os fatos ocor­ri­dos em 1964: golpe, chama­mento pop­u­lar, rev­olução, ditadura e tan­tas out­ras coisas.

Um leitor de pouco mais de 20 anos – ou seja, nascido bem depois, não ape­nas dos even­tos de 64, mas, da própria rede­moc­ra­ti­za­ção do país –, pediu-​me que falasse sobre isso.

A solic­i­tação foi feita já tem alguns dias, acred­ito que logo depois do pres­i­dente da República ter deter­mi­nado, com dire­ito a nota ofi­cial lida pelo general-​porta-​voz, que se comem­o­rasse, em todos os quar­téis do país o golpe mil­i­tar de 1964.

A par­tir de então a pauta do país foi tomada por esse debate, a ponto da grande mídia até encomen­dar pesquisas sobre a opinião dos cidadãos brasileiros sobre o assunto, com dire­ito a divul­gação em todos demais veícu­los de comu­ni­cação.

Achei desde a proposi­tura do pres­i­dente ao debate que se alas­trou pelo país, tudo um grande despropósito.

Ora, desde aquele evento que mer­gul­hou o Brasil num régime de exceção que durou vinte um anos, a data, com maior ou menor dis­crição, sem­pre foi fes­te­jada.

Setores mil­itares sem­pre acharam que fiz­eram um enorme bem a nação e que livrou nosso povo do “comunismo”.

Dito isso, por qual razão se traz para o debate tal assunto, a ponto de se reviver tan­tas paixões?

Maior despropósito, ainda, que tal “pauta” tenha sido trazida pelo próprio pres­i­dente da República.

Em um texto ante­rior disse achar isso um absurdo e, ques­tion­ado por um amigo, fiquei lhe devendo uma expli­cação com­ple­tar: a ini­cia­tiva do pres­i­dente (e do gov­erno) foi absurda porque é papel do man­datário maior ten­tar paci­ficar o país diante de tamanha divisão, e não, pelo con­trário, ten­tar acir­rar, ainda mais, os âni­mos.

O pres­i­dente pre­side para todos os brasileiros, os de esquerda, os de dire­ita, os bran­cos, os negros, os índios, os asiáti­cos, os het­eros­sex­u­ais, os homos­sex­u­ais, os demais inte­grantes da sopa de letrin­has, os ricos, os pobres, os mis­eráveis, todos, todos brasileiros e os de out­ras nacional­i­dades que aqui residem.

A respon­s­abil­i­dade do pres­i­dente da República é, pos­suindo suas próprias con­vicções e opiniões pes­soais, respeitar os demais cidadãos e admin­is­trar o país.

Isso implica, obvi­a­mente, em não aumen­tar, incen­ti­var ou fomen­tar as divisões nat­u­rais já exis­tentes em um país het­erogê­neo e de dimen­sões con­ti­nen­tais.

Lem­bro que quando saiu o resul­tado do primeiro turno das eleições pres­i­den­ci­ais escrevi um texto inti­t­u­lado: “DEU PT. E AGORA?”.

Dizia naquela opor­tu­nidade que o resul­tado do primeiro turno, inde­pen­dente do Par­tido dos Tra­bal­hadores — PT, sagrar-​se vito­rioso ou não, era o resul­tado por ele bus­cado, pois per­dendo ou gan­hando as eleições, per­manece­ria vivo no debate político nacional. Leiam lá que verão fazer todo o sen­tido.

Não sou pro­feta, mas já vivi o sufi­ciente para fazer uma leitura da real­i­dade na qual estou inserido.

Até aqui – torço para que mude –, o atual gov­erno vem admin­is­trando o país como o PT, só que com o sinal tro­cado.

Ninguém fra­cio­nou tanto a sociedade para gov­ernar quanto os qua­tro gov­er­nos petis­tas, nem mesmo os gov­er­nos mil­itares, com toda sua carên­cia de legit­im­i­dade, sobre­tudo, nos últi­mos gov­er­nos do régime.

O PT fomen­tou – como fazem todos os regimes total­itários, fas­cismo, nazismo, comu­nismo, maoísmo –, o mantra do “nós con­tra eles”. Os “nós”, somos os bons, os mel­hores, nos­sos defeitos são nos­sas qual­i­dades, e por aí vai.

Como pre­visto, o atual gov­erno envereda pelo mesmo cam­inho ao incen­ti­var práti­cas divi­sion­istas (ou dis­crim­i­natórias) no país.

Mas volte­mos à polêmica cri­ada sobre o régime mil­i­tar.

Vejam, a rup­tura da ordem insti­tu­cional ocor­reu a 55 anos. O debate sobre se foi ou não foi golpe mil­i­tar, afora o aspecto histórico é irrel­e­vante para a sociedade depois dos dois pactos soci­ais cos­tu­ra­dos depois daquele evento.

O de 1979, com o acordo pela Lei da Anis­tia, que foi ampla geral e irrestrita; e, em 1988 com a pro­mul­gação da Con­sti­tu­ição Fed­eral. Isso sem con­tar com o fim do régime mil­i­tar ocor­rido com a eleição do sen­hor Tan­credo Neves em janeiro de 1985, colo­cando fim ao régime dos generais/​presidentes.

Não estou dizendo que se deva igno­rar a história do país. Longe disso, pelo con­trário a história é a nossa bús­sola para evi­tar­mos os erros do pas­sado.

Acon­tece que na atual quadra política ninguém está dis­cutindo fatos históri­cos. Estão sim, fazendo pros­elit­ismo político de suas próprias con­vicções. E fazendo isso fal­si­f­i­cando a história.

O Brasil sofreu uma rup­tura na sua ordem insti­tu­cional em 1964, porque não se sub­sti­tui um pres­i­dente nos moldes como foi feito pelos mil­itares. É ver­dade.

Assim como é ver­dade que o “golpe” teve amplo apoio pop­u­lar, e o primeiro pres­i­dente do régime, gen­eral Castelo Branco foi empos­sado pelo Con­gresso Nacional, legit­i­ma­mente eleito pelo povo.

O Brasil viveu uma ditadura com os mil­itares. Sim, é ver­dade. A edição do Ato Insti­tu­cional nº. 5, que per­mi­tiu o fechamento do Con­gresso Nacional, cercea­mento das liber­dades indi­vid­u­ais, cas­sação de par­la­mentares, min­istros de tri­bunais, prisões sem for­mação de culpa, sus­pen­são do habeas cor­pus, etc., são incom­patíveis com qual­quer ideia de democ­ra­cia. Tanto assim que o min­istro Jar­bas Pas­sar­inho, naquele 13 de dezem­bro de 1968, disse man­dar às favas os escrúpu­los de con­sciên­cia.

Sim, todos sabiam que estavam mer­gul­hando o país na fase mais autoritária de um régime de exceção. Nesta fase que durou, pelo menos dez anos, tive­mos assas­si­natos de opos­i­tores, tor­turas, seque­stros e tan­tos out­ros crimes igual­mente con­sid­er­a­dos hedion­dos.

E ninguém tem o dire­ito de querer rel­a­tivizar crimes como a tor­tura ou assas­si­natos por moti­vações políti­cas sob o argu­mento que no Brasil essas práti­cas não se deram com a mesma inten­si­dade do ocor­rido noutros países da América do Sul, como a Argentina (com 30 mil mortos/​desaparecidos) ou o Chile (com cerca de 6 mil mortos/​desaparecidos).

Argu­men­tar que para a ditadura brasileira se aprox­i­mar das ditaduras daque­les países teríamos que ter entre mor­tos e desa­pare­ci­dos cerca de 100 mil cidadãos é de um cin­ismo atroz.

A ditadura brasileira é respon­s­abi­lizada pela morte/​desaparecimento de 400 pes­soas e, sabe-​se lá, quan­tos tor­tu­ra­dos, isso não a torna menos “ditadura”, ainda que use o cínico argu­mento de que estes mor­tos e/​ou tor­tu­ra­dos “mere­ce­ram”. Ainda que fosse um, ainda que “mere­cessem”, o Estado – nen­hum Estado –, tem esse dire­ito, e isso não torna o ato menos vil.

Como disse ante­ri­or­mente ninguém tem o dire­ito de rel­a­tivizar o sofri­mento de quem foi tor­tu­rado ou daque­les que foram pri­va­dos do con­vívio dos seus pais, fil­hos, irmãos ou qual­quer ente querido. Essas pes­soas têm todo o dire­ito de car­regarem para sem­pre a sua dor e jamais per­doarem os que tiveram par­tic­i­pação na mesma.

Não é legí­timo, sequer, que cobre­mos outro posi­ciona­mento destas pes­soas e, muito menos, que se faça pouco caso da sua dor.

Quem faz isso ape­nas rev­ela traços de psi­co­pa­tia.

Mas, feita tal pos­tu­lação, aque­les que hoje “puxam o coro” con­tra o régime mil­i­tar de 64, con­tra o golpe, con­tra a ditadura, estão longe, muito longe de serem inocentes ou de assim agirem por respeitarem os dire­tos humanos, a liber­dade e a segu­rança dos cidadãos, muito pelo con­trário.

Enquanto, ainda hoje, protes­tam con­tra os fatos ocor­ri­dos no Brasil em 1964, há, por­tanto, cinquenta e cinco anos, simul­tane­a­mente a isso, defen­dem as ter­ríveis ditaduras da Cor­eia do Norte, de Cuba e da Venezuela, que destruíram seus países e matam diari­a­mente, através de tor­turas e assas­si­natos, mil­hares de seus con­ci­dadãos.

Logo ali na fron­teira norte do Brasil, temos, segundo dados das Nações Unidas, mais de um mil­hão de cri­anças sendo tor­tu­radas pela fome, pelas doenças; temos cen­te­nas de cidadãos pre­sos por crimes políti­cos e out­ros mil­hões exi­la­dos e pri­va­dos de sua pátria.

Os que protes­tam con­tra o régime de mil­i­tar brasileiro, não ape­nas silen­ciam, eles apoiam for­mal­mente o régime de Nicolás Maduro.

Um caso, talvez seja o mais ilus­tra­tivo desta visão caolha com a qual muitos enx­ergam os fatos ocor­ri­dos há cinquenta e cinco anos em detri­mento dos fatos atu­ais, o caso Cesare Bat­tisti.

O mundo inteiro sabia do envolvi­mento de Cesare Bat­tisti com os assas­si­natos de alguns de seus con­ci­dadãos e por ter deix­ado alei­jado um jovem de tenra idade à época.

As instân­cias da justiça ital­iana com­pro­varam sua cul­pa­bil­i­dade, assim como out­ros tri­bunais inter­na­cionais.

Ape­sar disso tudo, Cesare Bat­tisti veio para o Brasil com sta­tus de “herói” e foi fes­te­jado e “tietado” por todos esses que ainda hoje protes­tam con­tra a ditadura brasileira.

Igno­rando os diver­sos ape­los do gov­erno e de todos os cidadãos ital­ianos, os gov­er­nos petis­tas do país (repisasse: estes mes­mos que estão nas ruas prote­s­tando con­tra a ditadura de 64), deram-​lhe guarda e lhe con­ced­eram o título de perseguido político.

Pois bem, preso no começo deste ano, na Bolívia, e depor­tado para Itália, onde cumpre pena de prisão per­pé­tua, Cesare Bat­tisti con­fes­sou que, de fato, fora o respon­sável pelos crimes pelos quais foi con­de­nado e, mais, que sem­pre negou tais fatos para con­tar com a sim­pa­tia de gov­er­nos e pes­soas “ditas” de esquerda. Não pre­cisava con­fes­sar, as provas eram patentes.

Ape­sar da con­fis­são do criminoso/​torturador, até agora não apare­ce­ram – den­tre aque­les que foram para as ruas no Brasil car­regando faixas “Bat­tisti Livre” –, ninguém para se des­cul­par com os brasileiros, e com os ital­ianos, pelo vex­ame de terem “acoitado” o ter­ror­ista por tanto tempo em ter­ritório nacional. Pior, ainda tem os que dizem que ele foi “tor­tu­rado” para confessar.

Ora, que moral têm essas pes­soas para revolver os fatos do nosso pas­sado se não têm o dis­cern­i­mento sequer de enx­er­gar o pre­sente?

Em um texto ante­rior, dizia que ditadura nen­huma, de dire­ita ou de esquerda, mere­cem o respeito dos cidadãos de bem.

Diante do atual debate, sobre­tudo, por quem faz o debate é hora dos cidadãos de bem – que nunca mataram, tor­tu­raram ou defend­eram assas­si­nos e tor­tu­radores –, igno­rarem os tolos e seguirmos em frente, tra­bal­hando para con­stru­irmos um país mais justo e humano para todos.

É o que apelo. Vamos deixar o pas­sado pas­sar.

Abdon Mar­inho é advo­gado.