AbdonMarinho - Os reis, os ladroes e a pistola de Cristo.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Domingo, 22 de Setem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Os reis, os ladroes e a pis­tola de Cristo.


OS REIS, OS LADRÕES E A PIS­TOLA DE CRISTO.

Por Abdon Marinho.

EM 1655, há 367 anos, na Mis­er­icór­dia de Lis­boa, o padre Antônio Vieira fazia a pre­gação do seu “Ser­mão do Bom Ladrão”. E já ini­ci­ava por dizer «Este ser­mão, que hoje se prega na Mis­er­icór­dia de Lis­boa, e não se prega na Capela Real, parecia-​me a mim que lá se havia de pre­gar, e não aqui. Daquela pauta havia de ser, e não desta. E por quê? Porque o texto em que se funda o mesmo ser­mão, todo per­tence à majes­tade daquele lugar, e nada à piedade deste”.

Ainda no primeiro pará­grafo sen­ten­cia: «Nem os reis podem ir ao paraíso sem levar con­sigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar con­sigo os reis”.

Antes de tal sen­tença Vieira coloca o exem­plo do Rei dos Reis, Nosso Sen­hor Jesus Cristo, que antes do sus­piro der­radeiro na cruz prom­e­teu a Dimas, o ladrão cru­ci­fi­cado ao seu lado, que ainda naquele dia estaria com Ele no paraíso.

Vieira foi um dos per­son­agens mais influ­entes de sua época, um gênio pelos dons da filosofia, da escrita e da oratória, tendo se desta­cado mais ainda como mis­sionário da Com­pan­hia de Jesus em ter­ras brasileiras. Como poucos con­hecia a Bíblia e toda a obra clás­sica.

Cer­ta­mente Vieira ficaria escan­dal­izado com um gov­er­nante que nega o cris­tian­ismo na sua essên­cia mais sagrada: a paz e a boa von­tade entre os homens para solução dos con­fli­tos.

A ideia de Jesus Cristo com pis­to­las pro­fes­sada por alguém que se diz hon­rado cristão só não é tão grave quanto o silên­cio e aqui­escên­cia de pas­tores evangéli­cos que vivem ofi­cial­mente de pre­gar sua palavra diante de tamanha blas­fêmia.

Com uma lorota o “bom cristão” negou, diante dos pre­gadores, mais de dois mil anos de cris­tian­ismo.

No fundo o gov­er­nante repetiu, segundo muitos, o entendi­mento de Judas Iscar­i­otes que ao trair Cristo imag­i­nou que este pode­ria invo­car exérci­tos celes­ti­ais para por fim a opressão judaico-​romana daque­les dias.

Mas, Cristo, entre­tanto, era só amor e bon­dade e mesmo no momento de maior aflição o que fez foi entregar-​se ao Pai, con­forme ensina o Evan­gelho de Mateus 2639: “Indo um pouco mais adi­ante, prostrou-​se com o rosto em terra e orou: ‘Meu Pai, se for pos­sível, afasta de mim este cálice; con­tudo, não seja como eu quero, mas sim como tu queres’”.

Vejam que Jesus mesmo no momento de maior deses­pero o que fez foi pedir ao Pai, se pos­sível, o afas­ta­mento do cálice da amar­gura, do sofri­mento, mas, mesmo assim que fosse feito con­forme sua von­tade, a von­tade do Pai.

E naquela mesma noite de angús­tia e sofri­mento, por ocasião da sua prisão, mais uma vez, Jesus Cristo con­dena a vio­lên­cia.

Falo do episó­dio da restau­ração da orelha de Malco relatada nos qua­tro Evan­gel­hos (João 18:1011, Mateus 26:51; Mar­cos 14:47 e Lucas 22:4951).

No momento da prisão um dos que acom­pan­havam Jesus – existe divergências/​omissão se foi o dis­cípulo Pedro –, lançou mão da espada e dece­pou a orelha do servo do sac­er­dote Caifás.

Seguimos com Mateus 2651, 52: “Então Jesus disse-​lhe: Embainha a tua espada; porque todos os que lançarem mão da espada, à espada mor­rerão. Ou pen­sas tu que eu não pode­ria agora orar a meu Pai, e que ele não me daria mais de doze legiões de anjos?”.

Como vemos, o repú­dio à vio­lên­cia é intrínseco ao cris­tian­ismo a par­tir dos ensi­na­men­tos e exem­plo do próprio Jesus.

Quando se fala na “paz de Cristo” não esta­mos falando palavras desprovi­das de sen­tido.

A ideia de um Cristo se val­endo do uso de pis­to­las – quem sabe uma sub­me­tral­hadora sob o manto sagrado –, é a negação do cris­tian­ismo, é uma proposição infamante e vil, pois negada de pronto pelo próprio Jesus, con­forme nar­rado em qua­tro evan­gel­hos.

A opção dos cristãos, seguindo o exem­plo de Cristo é pela não vio­lên­cia.

Jesus Cristo não deixou de com­prar pis­to­las porque elas “não exis­tiam naquela época”, mas, sim, por rejeitar a vio­lên­cia, ainda que no pre­juízo da sua vida ter­rena. Ou pen­sas tu que eu não pode­ria agora orar a meu Pai, e que ele não me daria mais de doze legiões de anjos?, disse Jesus.

Vive­mos dias tão estran­hos no Brasil que é bem pos­sível que deter­mi­na­dos cristãos, mesmo pas­tores, reneguem os ensi­na­men­tos bíbli­cos. Talvez, pelo anseio da adu­lação, imag­inem que a Bíblia nada vale e o que tem valia mesmo sejam as asnices pro­feri­das pelo ídolo.

Aliás, tenho um amigo que ao vê deter­mi­na­dos pre­gadores imer­sos em peca­dos, cos­tuma dizer que eles, sim, são os ver­dadeiros ateus, pois mesmo con­hecendo a Palavra optam pelo pecado.

Deix­e­mos, entre­tanto, tais digressões de mão e volte­mos aos ensi­na­men­tos de Vieira, que é, efe­ti­va­mente, o objeto do pre­sente texto.

Quando o padre diz que «Nem os reis podem ir ao paraíso sem levar con­sigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar con­sigo os reis”, ele está, na ver­dade, atribuindo ao gov­er­nante as respon­s­abil­i­dades pelos “negó­cios” do Estado.

Se um gov­erno não garante a segu­rança dos seus cidadãos e alguém perece em vir­tude disso, o gov­er­nante pode até ale­gar que não teve culpa. Não foi ele, pes­soal­mente, que man­dou matar o cidadão, mas ele tem respon­s­abil­i­dade pelo fato ter acon­te­cido por diver­sos motivos.

A figura do gov­er­nante “irre­spon­sável” é incom­patível o poder que lhe foi con­ce­dido pelo povo para a solução dos seus prob­le­mas.

Se trans­porta­mos tais con­ceitos para a real­i­dade atual do país, não ter­e­mos como desvin­cu­lar a respon­s­abil­i­dade dos gov­er­nantes dos diss­a­bores dos cidadãos.

Nos últi­mos anos o gov­erno fed­eral, de forma delib­er­ada ou não, “criou as condições” para o aumento da vio­lên­cia no norte do país, notada­mente na região amazônica.

Estas condições encontram-​se pre­sentes na diminuição da fis­cal­iza­ção com a redução do número de fis­cais; com a leniên­cia ou pouco caso com que per­mite a explo­ração de garim­pos ile­gais em ter­ras indí­ge­nas, do des­mata­mento da flo­resta e venda ile­gal da madeira para out­ros países e a própria redução da fis­cal­iza­ção nas fron­teiras, o que coloca em risco a segu­rança nacional.

O gov­erno omisso ou em muitos casos colocando-​se ao lado dos ”grileiros”, explo­radores de madeira, minérios e de out­ras riquezas nacionais atua como fer­mento que deságua na vio­lên­cia em seu estado bruto.

Quando o cidadão vai abaste­cer o carro e desco­bre que terá que vender o veículo para con­seguir colo­car o diesel, do mesmo modo, a respon­s­abil­i­dade é do gov­erno.

Assisto, só para citar o exem­plo mais recente, o gov­erno delib­er­ada­mente cul­par a Petro­bras pelo aumento dos preços dos com­bustíveis, inclu­sive cau­sando pre­juí­zos bil­ionários a empresa – foram 30 bil­hões na sexta-​feira e já anun­ciam mais trinta bil­hões de pre­juí­zos para a empresa na sem­ana seguinte com a insta­lação de uma CPI –, para fugir das próprias responsabilidades.

Con­forme aler­ta­mos desde o ano pas­sado – e até antes –, incon­tinên­cias ver­bais e incom­petên­cia, desval­orizaram a moeda brasileira bem acima da média das out­ras moedas. Este é um dos motivos para o nosso com­bustível ter subido tanto.

Outro motivo é o fato do Brasil, com uma guerra anun­ci­ada, e sendo majoritário no comando da Petro­bras, não ter ado­tado qual­quer medida aprovei­tando os lucros da empresa para ter um estoque reg­u­lador diante da crise anun­ci­ada ou mesmo ter din­heiro em caixa para ban­car, se necessário, algum sub­sí­dio durante a crise ou mesmo para incen­ti­var o uso de out­ros com­bustíveis não fós­seis.

O gov­erno tem feito reverso disso. Pensa que “que­brando” a empresa vai fazer os preços dos com­bustíveis baixarem. Vai acon­te­cer o con­trário. Ter­e­mos, neste caso, os reis levando a todos para o inferno.

Falta ao gov­erno plane­ja­mento estratégico de Estado. Não é levando tudo que é assunto para a lóg­ica política e eleitoral que saire­mos da atual crise, muito menos fug­indo das respon­s­abil­i­dades para as quais foram eleitos.

Quando o gov­erno propôs a alíquota única do Imposto sobre a Cir­cu­lação de Mer­cado­rias e Serviços — ICMS, sabia-​se que a medida não teria o condão de resolver o prob­lema da alta de preços – pode até dar um alívio –, mas nunca solu­cionar, pois o prob­lema dos preços não é ape­nas as alíquo­tas de impos­tos, tanto assim, que nem foi implan­tada e pelos novos aumen­tos nada vai rep­re­sen­tar de redução do preço na bomba.

O gov­erno e seus próceres ado­taram a medida para ter­ce­i­rizar com esta­dos a respon­s­abil­i­dade por um prob­lema que não pos­suía e não pos­sui capaci­dade para solu­cionar.

Vejam o resul­tado: privou-​se esta­dos e municí­pios de receitas que a União terá que com­pen­sar, ou seja, mais recur­sos saindo dos cofres públi­cos, e os preços dos com­bustíveis con­tin­uam os mes­mos … e aumen­tando.

Uma das mais impor­tante e antiga lição diz que você não resolve um prob­lema ata­cando os efeitos sem atacar a causa.

O atual gov­erno, talvez, imag­ine que possa solu­cionar os prob­le­mas nacionais fazendo o con­trário disso, quem sabe ajude fazer “arminha” ou usando a pis­tola que Cristo não teve a opor­tu­nidade de com­prar.

Assim, os ladrões vão levando os reis aos infer­nos ou invés destes os levarem ao paraíso.

Abdon Mar­inho é advogado.