AbdonMarinho - Ana e todas as mulheres.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Ana e todas as mulheres.

ANA E TODAS AS MUL­HERES.

Por Abdon Marinho.

QUANDO nossa mãe mor­reu no parto nor­mal do seu décimo filho ainda na faixa dos trinta e poucos anos, eu o oitavo filho, com pouco mais de cinco anos, pas­sei a sentir-​me como “respon­sável” pelos meus irmãos – éramos uma “escad­inha” que ia de zero a vinte e poucos anos –, por todos, mas, prin­ci­pal­mente, pelos vieram depois de mim, minha irmã Ana, como pouco mais de dois anos, e o caçula, Wan­der­lan, recém-​nascido.

Com a morte de mamãe deu-​se uma espé­cie de “diás­pora” na nossa família, uns irmãos morando com nosso pai, out­ros com os mais vel­hos, tios, como digo, sendo cri­a­dos como o bom Deus cria batatas na beira dos rios.

Somente quarenta anos depois da morte da nossa mãe, em 2013, no aniver­sário de sessenta anos do meu irmão mais velho (na ver­dade, o segundo mais velho), tive­mos a opor­tu­nidade de nos reunir-​nos todos. Nunca estive­mos afas­ta­dos, mas nunca mais havíamos nos encon­tra­dos todos no mesmo ambi­ente.

Nossa mãe era “cumeeira” da casa. Sem cumeeira a casa deixa de exi­s­tir.

O nosso pai, por sua própria cri­ação e for­mação, não era como muitos pais da atu­al­i­dade que na falta da mãe, por morte ou sep­a­ração, assumem aquele papel, eram out­ros tem­pos em que era “cada um por si”.

Tem­pos atrás pedi a uma amiga querida que acabara de perder uma cun­hada que cuidasse mel­hor dos sobrin­hos que dos próprios fil­hos, pois a orfan­dade é a mais solitária das mis­sões, destas em que você se sente soz­inho mesmo cer­cado de pes­soas ou como um intruso na sua própria casa.

Foi em uma mis­são assim, solitária, que pas­sei a infân­cia e juven­tude, não me pre­ocu­pando comigo, pois sabia como estava, mas, com meus irmãos, com os mais novos, prin­ci­pal­mente com Ana e Wan­der­lan. Oh, Deus, será que estão bem? Será que estão ali­men­ta­dos? Será que estão vesti­dos? Será que estão sendo mal­trata­dos?

No “peso” das angús­tias e pre­ocu­pações sem­pre me cau­sou mais inqui­etação a situ­ação da minha irmã, uma cri­ança, uma menina, sendo cri­ada sem o apoio e/​ou a super­visão de uma mãe, sem ter com quem dividir seus medos e sofri­men­tos.

Pelo menos no aspecto metafórico muitas vezes o meu coração san­grou.

Faço estas con­sid­er­ações ini­ci­ais para con­fes­sar que chorei ao ouvir os áudios hor­ren­dos do dep­utado paulista Arthur do Val sobre as mul­heres ucra­ni­anas refu­giadas de uma guerra covarde e sem sen­tido.

Chorei nova­mente ao assi­s­tir a um vídeo de uma ex-​embaixatriz ucra­ni­ana onde ela expressa toda sua revolta em relação à tor­peza dos áudios do já men­cionado par­la­men­tar em relação às suas compatriotas.

E, chorei nova­mente ao lê uma carta do jor­nal­ista Jamil Chade ao par­la­men­tar onde narra com crueza de detal­hes exper­iên­cias de vida como profis­sional sobre as condições de mul­heres, cri­anças e out­ras pes­soas vul­neráveis nos cam­pos de refu­gia­dos ao redor do mundo.

A situ­ação das refu­giadas de guer­ras em qual­quer lugar do mundo está muito longe de ser com­parada a uma “fila de bal­ada” das mel­hores casas do ramo no Brasil ou de qual­quer outro lugar. São pes­soas que, de uma hora pra outra, se viram pri­vadas de suas famílias, dos seus ami­gos, de suas roti­nas e de suas pátrias. São órfãs de tudo, que seguem para qual­quer outro lugar em busca de um pouco de segu­rança.

Qual­quer ser humano com um mín­imo de sen­si­bil­i­dade sabe que não existe lugar pior para se estar do que no meio de uma guerra.

Agora mesmo, na guerra da Ucrâ­nia, ouço o relato de uma médica em choque que disse ter tomado con­hec­i­mento de uma cri­ança de oito anos que fora estuprada por diver­sas vezes por diver­sos homens. Este é ape­nas um recorte den­tre tan­tos out­ros que uma guerra traz.

Esta­mos vendo cri­anças sendo entregues por seus pais a estran­hos para que con­sigam fugir; out­ras fug­indo soz­in­has para países estran­hos onde só poderão con­tar com a sol­i­dariedade das pes­soas de bem.

Ape­sar de viver­mos em um mundo conec­tado é muito provável que muitas destas pes­soas, inclu­sive cri­anças, se per­cam defin­i­ti­va­mente dos seus pais ou entes queri­dos – por os perderem na guerra ou por não terem mais como os encon­trar.

Quando ouvi o áudio pre­datório e nojento do “rep­re­sen­tante do povo”, numa situ­ação de extremo deses­pero para o povo ucra­ni­ano, além de ver­gonha, nojo e indig­nação por som­a­ti­zar toda a situ­ação, lembrei-​me da minha própria irmã, órfã e pobre, o que na visão do par­la­men­tar a tornaria “fácil”.

Qual­quer outro “humano” lem­braria tam­bém das irmãs ou fil­has ou mães ou qual­quer outra pes­soa só sexo fem­i­nino.

Hoje minha irmã, na casa dos cinquenta, com dois fil­hos, uma já for­mada médica e o outro em for­mação na mesma profis­são, já se ocupa de esperar a aposen­ta­do­ria e pajear os netos, cer­ta­mente nem deve ter ouvido ou “dado bola” para as infâmias do dep­utado estad­ual paulista sobre as mul­heres ucra­ni­anas e que são exten­si­vas a todas as out­ras.

Chega a ser ina­cred­itável que em pleno século XXI ainda ten­hamos que con­viver com este tipo de coisa.

No mês e na sem­ana ded­i­cado as mul­heres vimos um dep­utado referir-​se a elas como “fácies por serem pobres”, um pres­i­dente da República que achou a fala do men­cionado dep­utado “asquerosa” dizer que “as mul­heres estão prati­ca­mente integradas à sociedade” e um procurador-​geral da república “hom­e­nagear” as mul­heres dizendo que as mes­mas já podem escol­her a cor do esmalte para pin­tar as unhas ou o sap­ato que podem calçar.

Pois é, parece que volta­mos no tempo.

Assisto aos “amigu­in­hos” de movi­mento do dep­utado diz­erem que o mesmo não deve ser cas­sado pelos áudios nojen­tos porque não roubou o din­heiro público e que vão se mobi­lizar con­tra os pro­ced­i­men­tos que pedem sua cas­sação.

Uma das estraté­gias para “fulanizar” qual­quer debate é fazer com­para­ção de coisas dis­tin­tas e colocá-​las em escalas de val­ores. É isso que ten­tam fazer ou diz­erem que o que o dep­utado disse é grave mas que é mais grave é roubar o din­heir­inho do con­tribuinte.

Como dizia o outro, uma coisa é uma coisa outra coisa é outra coisa.

Acho que os ladrões do din­heiro público devem ser cas­sa­dos, mas isso não inval­ida que ocor­ram out­ras cas­sações antes destas ou que só cassem o dep­utado boçal, falas­trão e vagabundo depois que cas­sarem o dep­utado ladrãoz­inho.

Uma coisa nada tem a ver com a outra.

Um dos Crimes mais hedion­dos, ren­táveis, cruéis e fre­quente­mente é trá­fico de seres humanos, prin­ci­pal­mente mul­heres para a explo­ração sex­ual ou mesmo servirem como escravas. Ocorre em todo mundo e é tratado como um crime menor.

Isso ocorre sobre­tudo dev­ido às condições econômi­cas destas pessoas.

O estereótipo do dep­utado de que são “fácies por que são pobres” ainda que cun­hado em um papo pri­vado de “boleiros” rev­ela que o mesmo pode até ser outra coisa e não sofrer qual­quer repri­menda na esfera cível ou penal, porém é incom­patível com o decoro que deve ter um rep­re­sen­tante do povo.

Não são as palavras em si, mas sim o tipo de con­cepção que pos­sui o cidadão sobre situ­ações com­plexas de gravi­dade ímpar que rev­e­lam o seu desprezo pelas condições humanas e o seu despreparo para rep­re­sen­tar o povo.

Isso nada tem a ver com fato de ser hon­esto ou não.

Vejamos o pres­i­dente da República, sen­hor Bol­sonaro, ele “veste” uma gra­vata rosa suposta­mente para hom­e­nagear as mul­heres e diz que elas, a maio­ria da pop­u­lação brasileira, que “ralam” diari­a­mente em duas ou três jor­nadas de tra­balho, que cuidam da casa, dos fil­hos e até dos mari­dos, que estão “prati­ca­mente integradas à sociedade”.

Ora, quem estão prati­ca­mente inte­gra­dos à sociedade são as min­has carpas, quando chega alguma visita aqui em casa eu as chamo para mostrar a ela; quem está prati­ca­mente integrada à sociedade é a cadela de um amigo que ele trata com mais cuidado que um humano; quem está prati­ca­mente integrada a sociedade são os gatos de uma amiga, e por aí vai.

Dizer que as mul­heres estão “prati­ca­mente integradas à sociedade” é algo tão asqueroso quanto a falá­cia do dep­utado.

As mul­heres são a sociedade.

Já a fala do sen­hor Augusto Aras, procurador-​geral, que dev­e­ria procu­rar o que fazer, talvez lavar um tanque de roupas, são tão infan­tis que talvez só mereça que se diga é que ele, Aras, é uma espé­cie de poo­dle do Bol­sonaro, mas com a ressalva de que está quase inte­grado à sociedade.

A Ana e a todas as mul­heres, meu sin­cero respeito e apreço, pela pas­sagem do seu dia e por todo o sem­pre.

Abdon Mar­inho é advo­gado.