AbdonMarinho - A liberdade opressora.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

A liber­dade opressora.

A LIBER­DADE OPRES­SORA.

Por Abdon Mar­inho.

EMPA­TIA é a habil­i­dade de imaginar­‑se no lugar de outra pes­soa. Ou, a com­preen­são dos sen­ti­men­tos, dese­jos, ideias e ações de out­rem. Estes são os con­ceitos que nos são dados pela psi­colo­gia.

Se por acaso eu tivesse nascido nos últi­mos anos de vinte ou no começo dos anos trinta, na Ale­manha nazista ou em algum dos países sobre sua influên­cia direta, é bem provável que você não estivesse lendo o pre­sente texto ou nen­hum dos que escrevi nos últi­mos anos.

Cer­ta­mente não teria sobre­vivido para “con­tar história”.

Naque­les anos, junto com os seis mil­hões de judeus, com o meio mil­hão de ciganos, tam­bém, perderam a vida 300 mil pes­soas com defi­ciên­cia. Perderam a vida é um eufemismo, foram assas­si­nadas pela dout­rina nazista. Além de out­ros 400 mil pes­soas com defi­ciên­cia que foram ester­il­izadas, dos 15 mil homos­sex­u­ais lev­a­dos para os Cam­pos de de Con­cen­tração, e tan­tos out­ros males prat­i­ca­dos.

Um cidadão que até outro dia na sabia de sua existên­cia, em um canal de YouTube que tam­bém igno­rava, disse, sem meias palavras que “eu acho que tinha que ter um par­tido nazista recon­hecido por lei”, mais à frente, “a questão é: se o cara quiser ser anti­judeu, eu acho que que ele tinha o dire­ito de ser”. Um dep­utado fed­eral que par­tic­i­pava do pro­grama “con­cor­dando” com tal absurdo, afir­mou ter “achado errado” a Ale­manha ter crim­i­nal­izado o nazismo depois da II Guerra Mundial.

Evito os nomes dos cidadãos porque, como sabem, não cos­tumo dá audiên­cia pra vagabun­dos, por mim, mor­rerão no anon­i­mato.

Outro dia, aci­den­tal­mente, em um grupo de What­sApp vi o mesmo cidadão recla­mando de “perseguição política”, ale­gando ter sido demi­tido do canal que apre­sen­tava e, pelo fato do YouTube tê-​lo “ban­ido” defin­i­ti­va­mente de veic­u­lar qual­quer outro pro­grama ou con­teúdo na plataforma. Recon­hece que “errou” mas que a “punição” está sendo despro­por­cional.

Um curta-​metragem em exibição no Net­flix, inti­t­u­lado “Perdoai-​nos as nos­sas ofensa”, abre uma breve janela para o que foi a dout­rina nazista em relação aos defi­cientes.

Ainda nos crédi­tos ini­ci­ais pon­tua que “a prova de moral­i­dade de uma sociedade é o que ela faz por suas cri­anças”. Em seguida mostra que a dout­rina nazista impôs nos cur­rícu­los esco­lares que nós, defi­cientes, éramos estor­vos cus­tosos para toda a sociedade. Isso numa aula de matemática.

Em nome de uma dout­rina cen­te­nas de mil­hares de cri­anças, jovens e adul­tos com alguma defi­ciên­cia foram assas­si­nadas pelo Estado. Sim, foram reti­radas de suas famílias pelos sol­da­dos para serem assas­si­nadas. Pre­cisamos repe­tir inúmeras vezes o termo. Out­ras cen­te­nas de mil­hares lev­adas pre­sas aos cam­pos de con­cen­tração, ester­il­izadas, alvos de supos­tos exper­i­men­tos cien­tí­fi­cos cruéis e desumanos.

Sem falar nos seis mil­hões de judeus, no meio mil­hão de ciganos, nos mil­hares de homos­sex­u­ais, nas diver­sas out­ras mino­rias étni­cas e reli­giosas, assas­si­nadas, pre­sas, depor­tadas, aniquiladas, humilhadas …

A Con­sti­tu­ição da República diz no seu artigo 3º que con­sti­tui obje­tivos fun­da­men­tais da nação: “pro­mover o bem de todos, sem pre­con­ceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quais­quer out­ras for­mas de dis­crim­i­nação”, art. 3º, IV, CF.

Como podemos perce­ber a ideia de um par­tido político nazista no Brasil entra em choque com os obje­tivos do país que é pro­mover o bem de “todos”, sem qual­quer pre­con­ceito de origem, raça, sexo, cor, idade e out­ras for­mas de dis­crim­i­nação. A Con­sti­tu­ição deixa claro: “quais­quer out­ras for­mas de dis­crim­i­nação”.

O cidadão nos seus canais de inter­net – seu mega­fone vir­tual –, entende que é com­patível com a ideia de nação a existên­cia de um par­tido político que é o oposto dos obje­tivos fun­da­men­tais da nação, que defende a suprema­cia de uma raça, de uma origem, de uma cor, de uma ori­en­tação sex­ual e, até mesmo, das condições físi­cas e men­tais.

Mais que isso. Um par­tido político que defendam a implan­tação de seu ideário ao chegar no poder, como o fez na Ale­manha.

Este é um ponto inter­es­sante pois envolve a posição de um par­la­men­tar brasileiro ao dizer que a Ale­manha “errou” ao crim­i­nalizar o nazismo. Como não crim­i­nalizar? O obje­tivo de todo par­tido é chegar ao poder e lá chegando implan­tar seu ideário.

Foi isso que o par­tido nazista fez na Ale­manha: criou uma série de leis des­ti­tuindo de dire­itos humanos e bens, judeus, mino­rias, defi­cientes, homos­sex­u­ais e out­ras mino­rias; per­mitindo a real­iza­ção de exper­i­men­tos degradantes e, por fim, a “solução final”, a elim­i­nação física daque­las pes­soas.

Observem que mesmo os cur­rícu­los esco­lares foram alter­ados para que as cri­anças fos­sem ensi­nadas e aceitassem como nor­mal a supe­ri­or­i­dade de raça e a infe­ri­or­i­dade das demais pes­soas e até mesmo aceitassem a sua “elim­i­nação”.

No artigo 4º da Con­sti­tu­ição con­sta que o Brasil rege-​se nas suas relações inter­na­cionais pelos seguintes princí­pios, den­tre os quais: inde­pendên­cia nacional; prevalên­cia dos dire­itos humanos; autode­ter­mi­nação dos povos; não-​intervenção; igual­dade entre os Esta­dos; repú­dio ao ter­ror­ismo e ao racismo.

Se estes são princí­pios do nosso país nas suas relações inter­na­cionais, como admi­tir que um par­la­men­tar brasileiro, diga que um país errou ao crim­i­nalizar um ideário e uma prática nazista?

O nazismo ao “tomar” o poder na Ale­manha se voltou con­tra todos estes princí­pios estatuí­dos acima e com inco­mum vio­lên­cia e cru­el­dade.

A excelên­cia não acha que o ideário nazista e, prin­ci­pal­mente, suas pau­tas e práti­cas não são passíveis de crim­i­nal­iza­ção?

A expan­são ter­ri­to­r­ial; aten­tar con­tra a inde­pendên­cia de out­ras nações; a vio­lação dos dire­itos humanos como prática de estado; a autode­ter­mi­nação dos povos; a inter­venção mil­i­tar em out­ras nações, a sub­ju­gação de out­ros Esta­dos, etc, etc, nada disso é passível de crim­i­nal­iza­ção?

Ainda a Con­sti­tu­ição da República, no seu artigo 17, ao tratar dos par­tidos políti­cos, esta­b­elece: “É livre a cri­ação, fusão, incor­po­ração e extinção de par­tidos políti­cos, res­guarda­dos a sobera­nia nacional, o régime democrático, o pluri­par­tidarismo, os dire­itos fun­da­men­tais da pes­soa humana e obser­va­dos os seguintes preceitos: …”.

Veja que a Con­sti­tu­ição impõe condições para a cri­ação de par­tidos políti­cos, que res­guar­dem a sobera­nia nacional, o régime democrático, o pluri­par­tidarismo, os dire­itos fun­da­men­tais da pes­soa humana e ainda obser­va­dos diver­sos pre­ceitos, den­tre os quais a vedação de fazer uso de orga­ni­za­ção para­mil­i­tar.

Só a luz destes dis­pos­i­tivos con­sti­tu­cionais – e con­sti­tu­ição fed­eral traz inúmeros out­ros –, a ideia de ter­mos um “par­tido nazista recon­hecido por lei” é abso­lu­ta­mente infun­dada, a menos que se ree­screvêsse­mos toda a con­sti­tu­ição ou que o suposto “par­tido nazista” não fosse nazista – não con­forme apren­demos nos livros de história dos quais tanto o apre­sen­ta­dor quando o dep­utado pare­cem pos­suir aler­gia.

Vou além. A questão posta pelo cidadão de que “se o cara quiser ser um anti­judeu, tem o dire­ito de ser” – o mesmo “val­endo” para defi­cientes, ciganos, homos­sex­u­ais, e out­ras mino­rias étni­cas e reli­giosas –, se apli­caria ape­nas ao “dire­ito” de não gostar, como por exem­plo, “pre­firo azul a amarelo”, ou se esten­de­ria tal “dire­ito”, con­forme prat­i­cado pelo par­tido nazista orig­i­nal, ao dire­ito de persegui-​los, humilhá-​los e eliminá-​los, por fim? Viu o judeu na rua e dizem: “bora ali matar o judeu”; viu o defi­ciente e dizem: “bora ali matar o alei­jado”; viram o homos­sex­ual e dizem: “bora ali matar o veado”; viram o negro e dizem: “bora ali matar o negrinho”.

No poder, cer­ta­mente, ter­ce­i­rizariam o serviço sujo aos mil­itares.

Aos igno­rantes de plan­tão, durante a República de Weimar, mesmo antes dos nazis­tas chegarem ao poder, os seus par­tidários, em horda, saiam pelas ruas perseguir, mal­tratar e até matar estas pes­soas.

Quando alguém, falando para mil­hões de pes­soas ou não, diz que dev­eríamos “ter um par­tido nazista recon­hecido por lei”, de prefer­ên­cia recebendo mil­hões do fundo par­tidário (acréscimo meu) para difundir ou praticar seu ideário, dev­e­ria ter con­sciên­cia do peso de suas palavras ou ao menos pas­sar a vista por algum livro de história – se bem que a grande maio­ria dos que defen­dem isso, tem como mantra prin­ci­pal a neg­a­tiva da história: para eles o holo­causto nunca ocor­reu, o assas­si­nato de defi­cientes, ciganos e judeus, etc, é uma ficção, talvez por isso o dep­utado disse que a Ale­manha “errou” ao crim­i­nalizar o nazismo.

No Brasil – e noutras partes do mundo –, se vive um “boom” de pre­con­ceitos e dis­crim­i­nações: jogadores de fute­bol chama­dos de “maca­cos” durante as par­tidas de fute­bol; negro pegando a chave para abrir a porta de casa assas­si­nado pelo viz­inho; homos­sex­u­ais sendo assas­si­na­dos por sua condição sex­ual; defi­cientes sofrendo diver­sas pri­vações; idosos sendo dis­crim­i­na­dos e humil­ha­dos e por aí vai.

São situ­ações estru­tu­rais da nossa sociedade. São situ­ações que pre­cisamos com­bater dia e noite e não fin­gir­mos que elas não exis­tem.

A liber­dade indi­vid­ual de cada um para “defender esse tipo de coisa” se aplica ape­nas à defesa de expressão ou vem com o “combo” com­pleto?

Pes­soal­mente, até por não conhecê-​los, não acred­ito que o apre­sen­ta­dor e o dep­utado sejam nazis­tas, racis­tas, por conta do que dis­seram. Na minha opinião são ape­nas igno­rantes que gazetearam as aulas de história no ensino fun­da­men­tal e que acham que o con­ceito de “liber­dade” com­porta qual­quer absurdo.

Abdon Mar­inho é advo­gado.