AbdonMarinho - A “ESTUDANTADA” QUE CONSTRANGEU O BRASIL.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Domingo, 24 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

A “ESTU­DAN­TADAQUE CON­STRANGEU O BRASIL.

AESTU­DAN­TADAQUE CON­STRANGEU O BRASIL.

Por Abdon Marinho.

DOMINGO, 08 de julho de 2018, um dia para o Poder Judi­ciário esque­cer – ou para lem­brar como exem­plo do nunca mais deve ser repetido.

Mal acabara a cor­rida de fór­mula um, meu celu­lar começou a rece­ber men­sagens dos diver­sos gru­pos infor­mando que o Tri­bunal Regional Fed­eral da Quarta Região — TRF4, sedi­ado em Porto Ale­gre, RS, deter­mi­nara a soltura do ex-​presidente Lula, con­de­nado a doze anos e um mês de prisão pelo próprio tribunal.

A primeira impressão que tive, con­fesso, foi que se tratava de “fake news”. Aces­sei os prin­ci­pais sites do país e lá estava a notí­cia com todas as letras: o Desem­bar­gador Rogério Favreto, no plan­tão, aten­dendo a um pedido de três dep­uta­dos do Par­tido dos Tra­bal­hadores — PT, con­ced­era uma ordem de Habeas Cor­pus deter­mi­nando a ime­di­ata soltura do con­de­nado em primeira e segunda instân­cia pelo próprio tribunal.

Sem a pre­ten­são de lecionar nada, acho opor­tuno pon­tuar algu­mas questões.

A primeira questão é a natureza do HC impe­trado.

Qual­quer primeiranista de dire­ito sabe ao se recla­mar pela liber­dade de alguém tem que se iden­ti­ficar quem é a autori­dade coa­tora, ou seja, quem está restringindo a liber­dade do paciente. É isso que deter­mina a com­petên­cia de quem vai con­ceder ou negar a ordem. Essa infor­mação é essen­cial para a con­cessão da ordem e para saber a quem a ordem de soltura se dirige.

Foi iden­ti­fi­cado o juízo da 13a Vara da Justiça Fed­eral do Paraná, sub­or­di­nada ao TRF4 e, por­tanto, sub­or­di­nada à juris­dição do desem­bar­gador plantonista.

Além do mais, para con­cessão da ordem seria necessário um “fato novo”, uma vez, como dito ante­ri­or­mente, trata-​se de um con­de­nado em duas instân­cias, que já teve infini­tos recur­sos jul­ga­dos pelas mais diver­sas instân­cias da justiça brasileira, tendo, todas elas, por una­n­im­i­dade (a exceção do STF que decidiu por maio­ria), que a prisão é reg­u­lar e legitima.

Os impe­trantes, advo­ga­dos e dep­uta­dos petis­tas impe­traram a ordem sabendo de antemão que, exceto numa condição de anor­mal­i­dade, a ordem jamais seria con­ce­dida, diante dos obstácu­los legais.

Talvez, por isso, enquanto todos ainda choravam a der­rota da seleção brasileira, meia hora depois de ini­ci­ado o plan­tão do fim de sem­ana, com um rela­tor, que por seus vín­cu­los, sen­sível a tese jurídica dos impe­trantes, bus­caram a soltura do ex-​presidente, a despeito dos obstácu­los legais referidos.

O Reg­i­mento Interno do TRF4 limita a atu­ação do juízo de plan­tão, senão vejamos:

Art. 92. Nos sába­dos, domin­gos e feri­ados, nos dias em que não hou­ver expe­di­ente nor­mal, e fora do horário do expe­di­ente, haverá plan­tão no Tri­bunal, medi­ante rodízio dos Desem­bar­gadores, em escala aprovada pelo Plenário.

§ 2º O plan­tão judi­ciário não se des­tina à reit­er­ação de pedido já apre­ci­ado pelo Tri­bunal, inclu­sive em plan­tão ante­rior, nem à sua recon­sid­er­ação ou reex­ame, ou à apre­ci­ação de solic­i­tação de pror­ro­gação de autor­iza­ção judi­cial para escuta telefônica”.

Não bas­tasse a regra explicita do reg­i­mento interno do tri­bunal, uma res­olução do Con­selho Nacional de Justiça, a de número 71, no seu artigo 1º, repete o que já con­sta no RI: “§ 1º. O Plan­tão Judi­ciário não se des­tina à reit­er­ação de pedido já apre­ci­ado no órgão judi­cial de origem ou em plan­tão ante­rior, nem à sua recon­sid­er­ação ou reex­ame ou à apre­ci­ação de solic­i­tação de pror­ro­gação de autor­iza­ção judi­cial para escuta telefônica”.

Ape­sar de destes obstácu­los explic­i­ta­dos tanto no reg­i­mento quanto na res­olução do CNJ, o desem­bar­gador plan­ton­ista achou opor­tuno con­ceder a ordem de habeas cor­pus sob o argu­mento de que sugira um “fato novo”: o lança­mento da pré-​candidatura do ex-​presidente con­de­nado e que o mesmo pre­cis­aria está livre para par­tic­i­par de reuniões, debates, entre­vis­tas, etc.

Ora, esse “fato novo” é con­hecido desde que o ex-​presidente saiu do gov­erno para dar lugar a sen­hora Dilma Rouss­eff quando frustrada a ten­ta­tiva de ter­ceiro mandato seguido. Quando, em 2014, a sub­sti­tuta se recu­sou a ceder a vaga, foi motivo de stress público. Quando, através do processo de impeach­ment a pres­i­dente caiu, o ex-​presidente pres­i­dente se anun­ciou pré-​candidato, não descendo mais do palanque desde então. Nem mesmo com o processo, a con­de­nação e a prisão o afas­tou do palanque.

Na ver­dade, o con­de­nado, sem­pre usou esse fato, o fato politico, como uma ten­ta­tiva de esmae­cer as graves acusações con­tra ele. Não é sem razão que os críti­cos do ex-​presidente refere-​se a ele como “palanque ambu­lante”.

Assim, qual­quer pes­soa que exam­ine as coisas com um mín­imo de bom senso chegará a con­clusão de que essa argu­men­tação é absurda, que não faz qual­quer sen­tido.

Mais: faz pare­cer que houve um ten­ta­tiva de fuga tra­mada por ali­a­dos do ex-​presidente, os dep­uta­dos impe­trantes, e que essa “ten­ta­tiva” con­tou com a prov­i­den­cial sim­pa­tia do desem­bar­gador plan­ton­ista, um ex-​militante do par­tido dos tra­bal­hadores, que foi sub­or­di­nado direto de expres­si­vas fig­uras da orga­ni­za­ção par­tidária nos car­gos que ocu­param nos gov­er­nos que coman­daram, inclu­sive, sub­or­di­nado do ex-​presidente.

Numa situ­ação tão com­plexa, era de se esperar de um mag­istrado plan­ton­ista que agisse com cautela. Até porque, é duvi­dosa a com­petên­cia do TRF4, uma vez que a juris­dição já se esgo­tara com a decisão que acol­heu o recurso espe­cial e não acol­heu o recurso extra­ordinário da defesa.

Outra coisa, a decisão que man­dou pren­der o ex-​presidente foi da Oitava Câmara do TRF4. Logo a autori­dade coa­tora, seria aquele órgão judi­ciário e não o juízo da 13ª Vara do Paraná.

Como pode­ria um plan­ton­ista ultra­pas­sar todos esses óbices e man­dar soltar um con­de­nado sob o pálido argu­mento de que seria um pré-​candidato e que pre­cisa fazer sua cam­panha? Será que qual­quer um, nas mes­mas condições, pode invo­car tal argumento?

Outro ponto a mere­cer atenção é a con­duta do juiz Sér­gio Moro.

A defesa e seus críti­cos apon­tam que ele não pode­ria deixar de cumprir a decisão ou que não pode­ria intrometer-​se no assunto por que estaria no gozo de férias.

Vamos por partes. O juízo da 13ª Vara do Paraná foi apon­tado como coa­tor e foi “inti­mado” a prestar esclarec­i­men­tos no prazo de 05 (cinco) dias sobre os fatos artic­u­la­dos na petição ini­cial.

Logo, ainda que se ques­tione o fato de ter sus­pendido suas férias, deci­dido no domingo, ter ques­tion­ado a ordem de soltura.

Resta claro que ele não agiu “de ofi­cio” ou “se atrav­es­sou” no processo, ele foi chamado a se man­i­fes­tar nos autos.

O juiz diante de uma ordem fla­grante­mente ile­gal fez o cor­reto, ques­tio­nou o cumpri­mento através da medida jurídica cabível, dizendo não ser o juízo da 13ª Vara a autori­dade coa­tora, esta­b­ele­cendo, assim, o con­flito de com­petên­cia entre o plan­ton­ista e a Câmara que deter­mi­nou o cumpri­mento da pena.

Ora, ques­tion­ado sobre um pos­sível con­flito pos­i­tivo de com­petên­cia pelo juízo de piso, nada mais nor­mal que o rela­tor da matéria viesse aos autos se man­i­fes­tar.

Visto por este prisma, nada mais comum que o juiz nat­ural do feito no TRF4 “avo­casse” o processo para sus­pender a decisão.

Diante de tanta coisa inusi­tada, a decisão do desem­bar­gador Gebran Neto, numa ten­ta­tiva de “sal­var” a honra do tri­bunal, ainda disse que o mag­istrado plan­ton­ista foi lev­ado a “erro” pelos impe­trantes. Estes rapa­pés são comuns nos meio judiciário.

Inco­mum, o ponto fora da curva, foi, ape­sar da decisão do chamado juiz nat­ural e ainda em face da grave reper­cussão da matéria, o plan­ton­ista insi­s­tir na deter­mi­nação de soltura do con­de­nado, estip­u­lando um prazo de uma hora para a Poli­cia Fed­eral cumprir, sob pena de respon­s­abil­i­dade e desobediência.

E, se foi ques­tionável que tenha insis­tido na deter­mi­nação da soltura do con­de­nado após o alerta do feito pelo juiz de piso sobre uma pos­sível incom­petên­cia, acred­ito que tenha saído um pouco mais do tom, com a insistên­cia, após a man­i­fes­tação do rela­tor orig­i­nal do processo que, como disse na sua decisão, “avo­cou” para si a respon­s­abil­i­dade para delib­erar sobre o HC impe­trado, inclu­sive, com emis­são de opinião, extra autos, através de entre­vista a uma rádio do Rio Grande do Sul.

A tal insistên­cia levou o pres­i­dente daquela corte, aten­dendo a uma solic­i­tação do Min­istério Público Fed­eral, a sus­pender a lim­i­nar con­ce­dida e retornar os autos ao juízo nat­ural, o rela­tor do feito na Oitava Câmara.

Antes de nos per­gun­tar ou apon­tar quem agiu certo, quem agiu errado, quem extrapolou nas suas atribuições, fazem-​se necessários out­ros ques­tion­a­men­tos:

Quem ganha com tamanho tumulto proces­sual? Os advo­ga­dos do ex-​presidente já não estão ques­tio­nando o cumpri­mento da pena após decisão de segunda instân­cia no Supremo Tri­bunal Fed­eral? Não estão com recurso no Supe­rior Tri­bunal de Justiça dis­cutindo a con­de­nação? Será que acham “nor­mal” depois do processo ter per­cor­rido todas as instân­cias, com os mais vari­a­dos recur­sos, com uma “cane­tada” se des­man­che todas as decisões já tomadas?

O mín­imo que se espera do Poder Judi­ciário é cautela, é parcimô­nia, é serenidade.

Ainda que ache, pes­soal­mente, que as decisões do juízo da 13ª Vara, do rela­tor nat­ural e do pres­i­dente do TRF4 este­jam for­mal­mente cor­re­tas e resta­b­ele­ceu a nor­mal­i­dade do curso proces­sual, aquele tri­bunal – e o Poder Judi­ciário, de forma geral –, saem do episó­dio chamus­cado. Entrou naquilo que se cos­tuma dizer: cômico, se não fosse trágico.

Foi um espetáculo grotesco, con­strange­dor para a sociedade e para as insti­tu­ições.

Pior que isso, só se tivesse ocor­rido a soltura do con­de­nado sob a fajuta argu­men­tação de que não se pode negar o dire­ito de um cidadão – ainda que con­de­nado em duas instân­cias, por um crime que o inabilita a con­cor­rer a qual­quer cargo, e ser, por­tanto, duas vezes, “ficha suja” –, fazer sua “pré-​campanha”, e, no dia seguinte, ou poucos dias depois, o juízo nat­ural do processo, deter­mi­nar mais uma vez sua prisão. Sim, pois a menos que esteja tudo errado no dire­ito, a decisão que deter­mi­nou a soltura, ape­sar de todos os obstácu­los, não teria como se sus­ten­tar.

Teríamos de volta toda aquela nov­ela para deter­mi­nar a prisão do cidadão, com dire­ito a comí­cios, man­i­festos, tumul­tos, etc., sem con­tar com o plausível risco de fuga.

Uma inco­mum decisão secun­dadas por out­ras igual­mente inco­muns, num dia inco­mum, leva o país, em sus­pense, ser, mais uma vez, motivo de piadas ao redor do mundo.

Me per­gunto a razão disso tudo. A quem inter­essa ridic­u­larizar a Justiça do Brasil? Quem ganha com o país sendo motivo de cha­cota mundial?

Abdon Mar­inho é advogado.

*A foto que ilus­tra é a capa do Jor­nal Extra do dia 09 de julho de 2018.