AbdonMarinho - O PAÍS CONSAGRA O JEITINHO.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Domingo, 24 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

O PAÍS CON­SAGRA O JEITINHO.

O PAÍS CON­SAGRA O JEITINHO.

CHEGA ser doloroso assi­s­tir as jus­ti­fica­ti­vas dadas para o fato do Senado Fed­eral cas­sar o mandato da pres­i­dente Dilma Rouss­eff e, acatando provo­cação de ali­a­dos da cas­sada, votar uma segunda vez para reti­rar da pena a inabil­i­tação por oito anos, além do período de mandato remanescente.

A expli­cação é sim­ples: trata-​se de um ramo do dire­ito não ensi­nado nas uni­ver­si­dades pátrias nem cat­a­lo­gado cien­tifi­ca­mente e que atende pelo sin­gelo nome de jeitinho.

As regras para o imped­i­mento das autori­dades da República são esta­b­ele­ci­das pela Con­sti­tu­ição: começa na Câmara dos dep­uta­dos que faz a primeira admis­são – mas uma ino­vação trazida no processo da ex-​presidente Dilma, no prece­dente ante­rior admi­tia e pronto, sem neces­si­dade do ref­er­endo da segunda casa –, e ao Senado Fed­eral cabendo o processo e jul­ga­mento, con­forme pre­ceitua o artigo 52, que tran­screvo abaixo:

«Art. 52. Com­pete pri­v­a­ti­va­mente ao Senado Federal:

I — proces­sar e jul­gar o Pres­i­dente e o Vice-​Presidente da República nos crimes de respon­s­abil­i­dade, bem como os Min­istros de Estado e os Coman­dantes da Mar­inha, do Exército e da Aeronáu­tica nos crimes da mesma natureza conexos com aque­les; (Redação dada pela Emenda Con­sti­tu­cional nº 23, de 1999).

II –proces­sar e jul­gar os Min­istros do Supremo Tri­bunal Fed­eral, os mem­bros do Con­selho Nacional de Justiça e do Con­selho Nacional do Min­istério Público, o Procurador-​Geral da República e o Advogado-​Geral da União nos crimes de respon­s­abil­i­dade; (Redação dada pela Emenda Con­sti­tu­cional nº 45, de 2004).»

No mesmo artigo, o pará­grafo único traz as con­se­quên­cias. Tran­screvo abaixo:

«Pará­grafo único. Nos casos pre­vis­tos nos incisos I e II, fun­cionará como Pres­i­dente o do Supremo Tri­bunal Fed­eral, limitando-​se a con­de­nação, que somente será pro­ferida por dois terços dos votos do Senado Fed­eral, à perda do cargo, com inabil­i­tação, por oito anos, para o exer­cí­cio de função pública, sem pre­juízo das demais sanções judi­ci­ais cabíveis.»

A inabil­i­tação e à perda do cargo são con­se­quên­cias nat­u­rais do jul­ga­mento. Não existe pre­visão con­sti­tu­cional para a ino­vação que deram ao con­tido na Carta.

Entendo que o Senado Fed­eral pode­ria cas­sar (como cas­sou), assim como pode­ria enten­der que pres­i­dente não come­tera os crimes de respon­s­abil­i­dades que lhe foram imputa­dos. Eram livres para votar con­forme suas con­sciên­cias man­dassem. O que não pode­riam (e não podem), eram mit­i­gar a pena, aplicar a cas­sação sem inabil­i­tação. Desaver­gonhada­mente, ree­screveram a Con­sti­tu­ição, investiram-​se na condição de con­sti­tu­intes cau­sando insta­bil­i­dade e inse­gu­rança jurídica ao país.

Vejam só o alcance da lou­cura que fiz­eram: se a ex-​presidente Dilma tivesse renun­ci­ado (como fez o ex-​presidente Col­lor), seria, para todos os efeitos, inelegível, nos ter­mos da Lei Com­ple­men­tar 6490:

«k) o Pres­i­dente da República, o Gov­er­nador de Estado e do Dis­trito Fed­eral, o Prefeito, os mem­bros do Con­gresso Nacional, das Assem­bleias Leg­isla­ti­vas, da Câmara Leg­isla­tiva, das Câmaras Munic­i­pais, que renun­cia­rem a seus mandatos desde o ofer­ec­i­mento de rep­re­sen­tação ou petição capaz de autor­izar a aber­tura de processo por infringên­cia a dis­pos­i­tivo da Con­sti­tu­ição Fed­eral, da Con­sti­tu­ição Estad­ual, da Lei Orgânica do Dis­trito Fed­eral ou da Lei Orgânica do Municí­pio, para as eleições que se realizarem durante o período remanes­cente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos sub­se­quentes ao tér­mino da leg­is­latura; (Incluído pela Lei Com­ple­men­tar nº 135, de 2010)».

No «arranjo» que o Senado Fed­eral – pre­si­dido pelo pres­i­dente do STF –, fez, renun­ciar após a proposi­tura de qual­quer rep­re­sen­tação que possa ense­jar a cas­sação, tornou-​se mais grave que ser cas­sado pelo órgão com­pe­tente, no caso pre­sente, o Senado. Existe alguma lóg­ica nisso? Não. Claro que não.

Calma que a situ­ação é um pouquinho pior. Por que digo isso? Sim­ples, dos políti­cos brasileiros, não é de hoje, nos habit­u­amos a esperar os maiores absur­dos, não nos sur­preende que façam assim ou assado, que olhe os seus inter­esses antes dos inter­esses da nação, etc.

O grave do evento que comen­ta­mos é que a admis­são da pataquada foi obra e graça do pres­i­dente do Supremo Tri­bunal Fed­eral, o órgão a quem cabe, con­sti­tu­cional­mente, a guarda da Con­sti­tu­ição, a quem cabe zelar e inter­pre­tar o que lá está dito.

Será que o pará­grafo único do artigo 52, com­porta qual­quer outra inter­pre­tação que não aquela lit­eral­mente posta?

Por mais que se tente, a resposta é não. A inabil­i­tação é con­se­quên­cia do jul­ga­mento que cas­sou o mandato.

A lei, muito menos a Con­sti­tu­ição, não admitem «jeit­in­hos». Em tais tex­tos, foi assim que aprendi, não exis­tem palavras vãs.

O que fiz­eram, nas palavras da própria pres­i­dente cas­sada, foi ras­garem o man­da­mento con­sti­tu­cional. E, infe­liz­mente, não vai acon­te­cer nada. Ninguém, pelo que já ouvi dos diver­sos «enten­di­dos», sequer vai ques­tionar o que fiz­eram. A ninguém inter­essa a lei, o que é certo ou errado. É assim, que o Senado Fed­eral com o con­curso do pres­i­dente do Supremo aprovam e homologam, sem con­strang­i­mento, excrescên­cias como a que assistimos.

Dão uma no cravo, outra na fer­radura, e todos riem na cara dos cidadãos. Uma ver­gonha. Um vexame.

Abdon Mar­inho é advogado.