AbdonMarinho - A fome de cada um.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Terça-​feira, 20 de Maio de 2025



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

A fome de cada um.


A fome de cada um.

Por Abdon C. Marinho.

UM AMIGO me alcança com uma inda­gação: —vistes que belo lança­mento do pro­grama “Maran­hão sem fome”, do gov­erno estadual?

Acom­pan­hei “de longe”, pas­sara a sem­ana pelo inte­rior e, tendo con­seguido ante­ci­par a pas­sagem de sexta para quinta-​feira, à noite, me esper­ava uma pauta longa no escritório. O que vi foi através de notí­cias de blogues ou de pub­li­cações em redes soci­ais dos partícipes.

Pelo pouco que vi, pareceu-​me um evento por­ten­toso com dire­ito à pre­sença de min­istro de estado, camise­tas alu­si­vas ao pro­grama, ambi­ente bem dec­o­rado com direto a ponto especí­fico onde as pes­soas pode­riam tirar fotos para divul­gação em seus canais de comu­ni­cação. Um evento tão grandioso que real­izado em um giná­sio esportivo – o maior da cap­i­tal.

Devo con­fes­sar que tenho “difi­cul­dades” com esse tipo de coisa.

Certa vez, durante um crise hídrica na cap­i­tal – que até hoje padece com esse tipo de prob­lema –, vi um secretário de estado dizendo que o prob­lema da falta d‘água na cidade estaria resolvido a par­tir de então enquanto pas­sava “em revista” uma frota de carros-​pipas.

Vendo a cena fiz uma per­gunta indisc­reta: —ei, já não seria hora da cap­i­tal do estado pos­suir um sis­tema de abastec­i­mento de água reg­u­lar garan­ti­ndo água na torneira de cada cidadão ao invés de abastecê-​los através de carro-​pipa como se fazia nos tem­pos de Ana Jansen?

Outra vez vi um gov­er­nador se mol­hando todo para inau­gu­rar em um dos rincões do estado um poço arte­siano. Sim, aquela comu­nidade ainda teria que ir até o cha­fariz bus­car a água que, como dire­ito básico, dev­e­ria estar disponível na torneira.

Uma outra vez vi deter­mi­nado prefeito aqui mesmo na grande ilha “fazendo festa” para inau­gu­rar uma sentina. Isso mesmo, uma sentina. Os mais jovens, sequer, deve con­hecer o termo.

Agora esta­mos “inau­gu­rando” mais um pro­grama de com­bate à fome ou a fome extrema. Longe de mim tecer crit­i­cas à ini­cia­tiva gov­er­na­men­tal, se as pes­soas estão pas­sando fome ou enganando-​a com “sopa de sal”, con­forme exibido dias desses em uma pro­pa­ganda insti­tu­cional, urge que se faça algo. Quem tem fome tem pressa.

Como disse, tenho difi­cul­dades com esse tipo de coisa. Essa difi­cul­dade é decor­rente de uma edu­cação rece­bida dos meus pais.

Fomos edu­ca­dos para não aceitar comida dos out­ros. Se chegasse o horário das refeições e estivésse­mos fora de casa éramos proibidos de aceitar qual­quer con­vite para almoçar, jan­tar, etc.

— Vamos almoçar? Vamos jan­tar? Não, obri­gado. Eu não estou com fome. O estô­mago pode­ria estar “ron­cando”.

Meu pai, homem rude do campo, anal­fa­beto por parte de pai, mãe e parteira, acos­tu­mado ao tra­balho de sol a sol, cos­tu­mava dizer que esmola só era dev­ida aos cegos e alei­ja­dos. Assim mesmo, sem qual­quer pre­ocu­pação com o politi­ca­mente cor­reto, que na época não existia.

A “ver­gonha” maior não residia em dar a “esmola” mas em pre­cisar rece­ber, em ser inca­paz de prover o próprio sus­tento e da sua família.

O tempo pas­sou mas ainda hoje car­rego comigo esse hábito. As pes­soas me con­vi­dam para almoçar ou jan­tar ou mesmo quando ofer­e­cem algum coisa e não cos­tumo aceitar.

Os meus ami­gos de viagem por vezes se “zangam” com min­has recusas. Uma sen­hora ofereceu-​me umas gal­in­has gor­das; um sen­hor disse que iria me trazer umas pescadas ou camarões como gestos de gratidão por algo que fiz e que nem lem­bro mais. Não, não, muito obri­gado.

Assim, repetindo, tenho difi­cul­dades de aceitar que, em pleno século XXI, com o restante do mundo dis­cu­tido sobre tec­nolo­gia de ponta, os avanços da inter­net e da inteligên­cia arti­fi­cial, o nosso estado ainda esteja na “rabeira” em tudo que é indi­cador social e ainda “fazendo festa” para lança­mento de pro­grama de com­bate à fome, pior, a fome extrema, aquela que se o cidadão não comer vai mor­rer de fome.

A per­cepção que tenho, fazendo um para­lelo com a minha infân­cia rural, é que o Maran­hão ficou mais pobre. Deix­amos de ser o El dourado do nordeste para ser um fardo para o país. Só vin­cu­la­dos ao bolsa-​família temos 54% (cinquenta e qua­tro por cento) da pop­u­lação; além disso temos os diver­sos out­ros bene­fí­cios, como seguro-​defeso, aposen­ta­do­rias rurais, pé de meia, e tan­tos out­ros que não sabe­mos nem o nome.

Não é sem razão que as fraudes no INSS apon­taram o Maran­hão e o Piauí com a maior con­cen­tração de víti­mas – aqui se encon­tram o maior número pro­por­cional de ben­efi­ciários e nem todos legí­ti­mos.

Lá pelos anos cinquenta e sessenta o nosso estado era a promessa de vida mel­hor para mil­hares de reti­rantes fugi­dos da seca de out­ros esta­dos do nordeste.

Ainda hoje o estado pos­sui condições favoráveis que nen­hum outro estado pos­sui. Ainda temos rios; ainda temos solo rico; ainda temos riquezas nat­u­rais extra­ordinárias; ainda temo um litoral imenso; local para con­strução de por­tos com os maiores cal­a­dos do mundo; uma posição priv­i­le­giada em relação a linha do equador e tan­tas out­ras condições que pode­riam nos fazer uma potên­cia.

Se fize­mos uma com­para­ção com o que éramos nos anos cinquenta com o que somos hoje, ver­e­mos que nos últi­mos setenta e cinco anos o Maran­hão cresceu como rabo de cav­alo: para baixo.

Não é que o Maran­hão não tenha apre­sen­tado uma mel­hora aqui ou ali é os nos­sos avanços ficaram muito aquém das efe­ti­vas neces­si­dades para um desen­volvi­mento e cresci­mento sus­ten­tável.

Já disse em diver­sos out­ros tex­tos que no dia em que forem cor­ta­dos todos bene­fí­cios soci­ais metade da pop­u­lação maran­hense morre.

Vejam divulgou-​se recen­te­mente a renda per capita men­sal domi­cil­iar, o Maran­hão ficou em último lugar – acred­ito que exis­tisse mais um estado na fed­er­ação con­tin­uaríamos atrás. Esse tipo de pesquisa não con­sid­era que a renda per capita men­sal domi­cil­iar no estado é fic­tí­cia, ela não existe obje­ti­va­mente, o cidadão não gerou essa riqueza, ela é, em grande parte, fruto dos repasses do gov­erno fed­eral.

O lança­mento de um pro­grama de com­bate à fome extrema em um estado tão “rico” quanto o nosso é o ates­tado de que nos últi­mos setenta anos não fomos capazes de fazer o “dever de casa”.

Aqui, com meus botões, fico a pen­sar: será que as autori­dades públi­cas não dev­e­riam se per­gun­tar como cheg­amos a esse ponto de indigên­cia? Será que não se sen­tem nen­hum pouco respon­sáveis pela situ­ação do estado? Será que acham nor­mal um estado “rico” como o nosso osten­tar os piores indi­cadores soci­ais em tudo, a ponto de pre­cisar de um pro­grama de com­bate à fome? Será que não ficam “con­strangi­dos” aqui e lá fora em rep­re­sentarem um dos esta­dos mais pobres do Brasil ou acham tanta fome e mis­éria é nor­mal? Será que não dev­e­riam se per­gun­tar o que pode­riam fazer para mudar tal real­i­dade? Será que não dev­e­riam se per­gun­tar sobre a util­i­dade de seus mandatos diante da imutabil­i­dade da mis­éria do povo que dizem representar?

Sim, sen­hores dep­uta­dos, sen­hores senadores e demais autori­dades de todos os poderes, o que, obje­ti­va­mente, as excelên­cias estão fazendo para mudar a real­i­dade de um povo que ainda pre­cisa de um pro­grama estatal de com­bate à fome?

Com tan­tas inda­gações – que não sei respon­der –, me sobra um dilema uni­ver­sal: somos o estado mais pobre por que sem­pre tive­mos pés­si­mos rep­re­sen­tantes ou sem­pre tive­mos pés­si­mos rep­re­sen­tantes por ser­mos um estado pobre?

Fica esse dilema para reflexão semanal.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.