Democracia e arbítrio.
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- Criado: Domingo, 06 Agosto 2023 14:11
- Escrito por Abdon Marinho
DEMOCRACIA E ARBÍTRIO.
Por Abdon C. Marinho..
HÁ ALGUNS DIAS o presidente da República, senhor Luiz Inácio Lula da Silva, em entrevista à uma emissora de rádio, indagado sobre a situação política da Venezuela, cunhou que democracia seria um conceito relativo, argumentando que tal conceito poderia sofrer variações, justificando que a “democracia venezuelana” estaria assentada no fato de ter eleições periódicas – algo mais ou menos assim.
Com razão – e com os oportunismos de sempre –, houve uma “grita” geral, todos tentando tirar uma “casquinha’’ ou se aproveitando da “espinafrar” mais uma, entre tantas, tolices ditas pela excelência.
Muito embora em seu conceito primário, democracia seja a forma de governo caracterizada pela soberania popular, sabemos que o simples fato de haverem eleições “de vez em quando”, não torna essa ou aquela nação uma democracia.
Um exemplo, já citado tantas outras vezes, é o que se dava no Iraque nos anos em que foi governado por Saddam Hussein, lembro que tratávamos como folclore o resultado das eleições ocorrida naquele país em que o governante sagrava-se vitorioso com quase 100% (cem por cento) dos votos.
Situação idêntica aos “pleitos” ainda hoje ocorridos na Coreia do Norte – alguém duvida que uma eleição nesse país não ocorra com cem por cento dos sufrágios em favor do atual líder? Podemos dizer, porque houve uma “eleição” que tal país é uma democracia?
A chancela eleitoral de um povo escravizado de todas as formas por um governo autoritário e autocrático está muito longe de garantir a existência de uma democracia.
E são diversos os exemplos de nações comandadas por regimes autoritários e autocráticos onde usam instrumentos democráticos pervertidos para se dizerem democracias.
Em muitos casos a democracia “vai se perdendo” ao longo do caminho.
Às vezes se faz uma alternância de poder – instrumento próprio da democracia –, e esse “novo” governo eleito pelo povo em eleições livres passa a instrumentalizar seu grupo político e mesmo o Estado para se manterem indefinidamente no poder, “matando” a democracia.
Essa divagação é apenas para dizer que alguém “encher” a boca para falar de democracia ao argumento de eleições regulares é apenas uma tolice.
O presente texto, entretanto, não é para tratar – ou para fazermos um “tratado” –, sobre democracia, mas para dizer que embora não sejam tênues os limites entre democracia e arbítrio muitas vezes “focados” nos próprios interesses governantes e lideranças dos vários seguimentos da sociedade acabam por “misturar” alhos com bugalhos.
A minha percepção é que o Brasil, nos últimos anos “caminhou” para a implementação de um régime autoritário, talvez tendo como modelo o régime húngaro, turco ou russo ou mesmo uma vertente do que se encontra em curso em Israel ou na Polônia.
Desde 2019 que escrevo sobre isso.
Não tenho qualquer dúvida, também, que os governantes com seus apoiadores, muitos deles, inclusive, das Forças Armadas e das polícias militares buscaram viabilizar um golpe de estado que os mantivessem no poder quando derrotados nas urnas em segundo turno.
Assim como não tenho dúvidas de que em 8 de janeiro tivemos uma tentativa de golpe institucional, incentivada, patrocinada e apoiada senão pelo próprio ex-presidente, mas por pessoas muito próximas a ele.
A tentativa de golpe institucional – que mais assemelhou-se a uma campanha do exército de Brancaleone, com tiazinhas do WhatsApp fantasiadas de verde amarelo, muitos outros aliciados entre os desempregados “vestidos” de patriotas vindos dos quatro cantos do país –, fracassada, como não poderia deixar de sê-la, funciona como um divisor de águas com a democracia formal se impondo à bisonha intentona.
Acredito e sustento que todos os responsáveis pelo ato (desde os inspiradores, financiadores e executores), como já vem sendo precisam, com o devido processo legal, sofrerem a reprimenda da lei, até como forma de prevenir futuras “recaídas”.
Pois bem, dito isso, é importante principalmente para as autoridades dos constituídos que não se afastem dos limites da lei.
É dizer, à guisa de se dizerem “defensores da democracia” não podem, eles próprios e por motivações pessoais cometerem arbitrariedades.
Como vimos nas linhas anteriores é muito fácil aos detetores do poder dizerem que estão “defendendo a democracia”, “defendendo a Constituição” ou que estão “jogando dentro das quatro linhas”.
São discursos fáceis mas que estão distantes das práticas do dia a dia.
Não passa de abuso que uma querela pessoal ou uma discussão mesmo que motivações políticas ou com agressão justifique a mobilização da Polícia Federal para se fazer busca e apreensão, confiscar celulares, computadores ou coisas do gênero.
Os “defensores da democracia” que se pode até reconhecer terem cumprido o seu papel, não podem sob a justificativa eterna de estarem defendendo a democracia, cometerem arbitrariedades, repete-se.
A história está recheada de exemplos de tais práticas: os detentores do poder “elegem” os inimigos do “estado”, muitas das vezes dizem que são “inimigos do povo” e passam a dar vazão a toda sorte de perseguição e de sadismo.
Quantas inocentes não viraram cinzas nas fogueiras sob o argumento de que seriam “bruxas”? Daí advém o termo “caça às bruxas”. Quantos crimes não foram imputados aos judeus ao redor do mundo para que os nazistas implementassem a sua “solução final”, a dizimação pura e simples de milhões de seres humanos pelo “crime” de serem judeus? Assim como fizeram com os homossexuais, os povos ciganos e tantos outros. Dizimados, torturados, mortos, levados à loucura por serem quem eram.
Ainda hoje é assim em diversos países do mundo – aliás, de tempos em tempos ressurgem esbirros autoritários querendo impor seus ideários aos demais –, Venezuela, Cuba, Nicarágua, Rússia só para citar alguns que se autodenominam “democracias”, adotam modelos de “paz de cemitérios” ou seja, eliminam a possibilidade dos adversários, alçados à condição de “inimigos do povo” de chegarem ao poder.
Em todos os tempo e em todos os lugares a tentação autoritária ronda os “donos do poder” fazendo-os acharem que apenas eles (quando muito seu grupo) são capazes de conduzirem os destinos da nações.
É dessa “tentação” autoritária que o Brasil precisa “fugir”, não aceitando que falso discurso de “defesa da democracia” seja o veneno que vai matá-la.
Dizia Lorde Acton que «o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus”.
Em tal pensamento dizia que o processo histórico desenvolve-se orientado pela liberdade humana ou livre-arbítrio, no sentido de uma liberdade cada vez maior.
O grande problema do Brasil da atualidade é que mesmo os verdadeiros democratas não perceberam – ou não quiseram perceber –, que o seu silêncio aos desmandos, venham eles de quaisquer dos poderes da República ou dos seus integrantes, é o colchão mole onde repousam os ideários autoritários e, assim, como a história já está cansada de mostrar, só perceberam quando forem eles próprios as vítimas dos ditadores de plantão.
A democracia, diferente do muitos podem achar, não é um valor relativo. Acreditar ou defender isso é flertar com o arbítrio.
Abdon C. Marinho é advogado.