Um presidente em fuga
- Detalhes
- Criado: Sábado, 31 Dezembro 2022 12:50
- Escrito por Abdon Marinho
UM PRESIDENTE EM FUGA.
Por Abdon C. Marinho.
INTERROMPEMOS o recesso de final de ano para um registro que só podemos fazer até hoje: pela primeira vez desde que Cabral aportou por estas terras, temos um presidente em fuga. Sim, não passa de eufemismo dizer que o “ainda” presidente (até as 24 horas de hoje) entrou de férias ou que o presidente “viajou” ou que o presidente foi visitar “amigos” no estrangeiro ou comprar uma compota de bacuri, ou mesmo, como ainda pregam os mais crédulos da sua seita, o presidente deixou o país para comandar a reação a partir do estrangeiro ou ainda que na undécima hora as Forças Armadas do país irão tomar o poder e chamá-lo para reassumir o cargo de presidente na eleição que perdeu.
Sinto nos que pregam tais coisas uma fé própria dos que se encontram afastados da realidade. Assim como os devotos de D. Sebastião que ainda hoje aguardam o seu retorno ou, trazendo para algo mais próxima da realidade brasileira, na vitória de Antônio Conselheiro contra o exército republicano de Floriano Peixoto, na Guerra de Canudos, tão bem retratada na obra “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, reconhecida como primeiro livro-reportagem do país e pode ser lido como livro de história, geografia ou sociologia.
Os que assim agem ou expõem, ao meu sentir, parecem pertencentes a uma realidade paralela completamente descolada da realidade. Não faz nenhum sentido que estejam há sessenta dias acampados em frente aos quartéis militares, em orações, louvores ou cantando hinos, pedindo um golpe militar na décima economia do mundo em pleno avançado século XXI.
Voltando à nossa realidade nua e crua – e ao que motiva o presente texto –, temos um presidente em fuga. Não sei o que o motivou a “fugir” do país faltando pouco mais de um dia para o término do mandato ou que temeu ao fazê-lo, mas, a verdade é uma só, o presidente da república fugiu do país.
O vice-presidente, no exercício da presidência, uma vez que o titular bandeou-se para o estrangeiro, anunciou ou pronunciamento à nação para o dia de hoje, talvez esclareça os motivos da fuga do presidente – aguardemos.
Se fizermos um resgate histórico, em 1985, o então presidente João Figueiredo, também recusou-se a transmitir o cargo a Sarney (na véspera da posse o presidente eleito Tancredo Neves passou mal e foi internado às pressas no hospital de Base de Brasília, onde veio falecer, em 21 de abril).
Se não me falha a memória, Figueiredo não faria a transmissão de cargo a Tancredo Neves – e muito menos a Sarney, de quem tomara ojeriza por ter o mesmo se bandeado para a oposição após ter dado sustentação política ao régime militar do qual foi o último presidente –, e viajara para o Sítio do Dragão, em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, deixando a faixa presidencial com algum ajudante de ordens.
A história não conta, mas é bem provável que no momento da posse de Sarney na presidência interina, Figueiredo estivesse andando a cavalo ou cuidando dos mesmos ou ainda tomando chá com a esposa.
Embora a transmissão de cargo seja um gesto de civilidade e maturidade democrática, não existe uma obrigação de fazê-lo – quem empossa o governante eleito é o Congresso Nacional, composto pelos representantes do povo –, assim como não existe uma obrigatoriedade de reconhecer o resultado eleitoral e cumprimentar o vencedor – quem proclama o resultado das eleições é o Tribunal Superior Eleitoral — TSE.
Em ambos os casos, reconhecer o resultado e transmitir o cargo ao eleito foram comportamentos aos quais nos acostumamos e nos fazia pensar que vivíamos em uma democracia amadurecida.
Em 1990, mesmo sendo duramente criticado durante o processo eleitoral do ano anterior, Sarney transmitiu o cargo o presidente Collor de Melo; em 1995, Itamar Franco – que assumiu a presidência em razão da cassação de Collor –, fez a transmissão do cargo a Fernando Henrique Cardoso; em 2003, foi a vez de FHC transmitir a Lula, que transmitiu a Dilma Rousseff, em 2011; em 2019, Michel Temer – que assumiu em razão do impeachment de Dilma –, fez a transmissão de cargo ao atual presidente, que se encontra em fuga.
Ora, se a recusa do presidente derrotado era apenas em passar a faixa ou transmitir o cargo ao eleito, não precisaria espetar mais uma conta (esperamos que a última) nas costas do contribuinte dando as costas ao país com um séquito para o exterior, poderia ter ficado no Brasil e até mesmo em Brasília, tomando um chazinho de camomila com a primeira-dama, enquanto os novos inquilinos do poder assumiam os cargos para os quais foram eleitos.
Mas a “fuga” do presidente para estrangeiro, por razões que ainda desconhecemos, talvez seja ou apenas mereça um registro para história, deste que vos escreve e de tantos outros que já se debruçaram ou se debruçarão sobre o tema.
O mais grave de tudo isso – e que a história deverá levar anos para entender –, é a humilhação pública a que foram e a que estão sendo submetidos os seus milhares ou milhões de seguidores acampados nas portas dos quartéis com propósitos golpistas, por acreditarem em uma “virada de mesa” ou em um milagre de último minuto.
O presidente em fuga os “cozinhou” durante dois longos meses de sol, chuva, sereno, privações diversas com falsas esperanças e ilusões, para pouco antes da fuga dizer que nada tinha a ver com os referidos movimentos e protestos.
Não sendo ele um completo ignorante, já era sabedor desde sempre que não houve qualquer anormalidade no processo eleitoral, poderia ter reconhecido como “homem” a derrota no mesmo dia em que ela foi divulgada, como fizeram todas as entidades, órgãos e governos estrangeiros, ou quando muito, reconhecer a derrota quando divulgado o resultado das análises feitas pelas Forças Armadas – que por receio ou covardia não foi tão cabal quanto deveria.
Mas não, em silêncio, insuflando os seus através de terceiros e com sinais conhecidos como “apitos de cachorro”, deixou que os seus aliados, seguidores ou devotos, homens, mulheres, crianças, permanecessem nas portas dos quartéis passando por privações e vexames, acreditando em coisas só existentes numa realidade paralela.
Vejam que difundiram (ou ainda difundem) que o golpe vai ocorrer de hoje pra manhã; que as fronteiras estão sendo protegidas para evitar que nações estrangeiras invadam o país por ocasião do golpe; que países aliados do presidente em fuga já estão na costa do país, prontos para ajudarem as Forças Armadas no golpe; e, até mesmo, pasmem, que os ET’s estão no ponto para intervirem.
Tudo isso, entrecortado com os discursos de que estão prontos a “morrer pela pátria” para que a mesma não se torne uma “nação comunista”.
Confesso que grau de fanatismo idêntico, na história recente, só encontra paralelo, no suicídio massa dos seguidores de Jim Jones na Guiana, em 1978.
Tudo isso em defesa do “capitão” para que este no penúltimo dia de governo, faça um pronunciamento dizendo que nada tem com isso e empreenda fuga para os Estados Unidos.
Logo no início da campanha escrevi um texto intitulado “Um presidente entre o Planalto e a Papuda”.
Não sei o que fez o presidente fugir, mas certamente ele deve ter algum motivo para assim agir.
Só o tempo, senhor da razão, nos trará as respostas que precisamos.
Abdon C. Marinho é advogado.