AbdonMarinho - QUANDO A REALIDADE SE IMPÕE.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Quinta-​feira, 16 de Maio de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

QUANDO A REAL­I­DADE SE IMPÕE.

QUANDO A REAL­I­DADE SE IMPÕE.

Por Abdon Marinho.

QUEM acred­ita em coin­cidên­cias diz que foi mera fatal­i­dade. Os que não acred­i­tam dizem que foi tão somente a imposição da real­i­dade sobre o discurso.

O fato, entre­tanto, não pode­ria ser mais emblemático: no mesmo dia em que o gov­er­nador, em artigo assi­nado e pub­li­cado no Jor­nal Pequeno, tecia loas a polit­ica de segu­rança do seu gov­erno, jus­ta­mente neste dia, a ilha acor­dou sobres­saltada com as notí­cias de vio­lên­cia extrema. Na madru­gada foi um del­e­gado da Poli­cia Fed­eral que teve a vida ceifada (em princí­pio vitima de um assalto mal­suce­dido no bairro do Araçagi, São José de Riba­mar), antes deste fato ou logo depois um cidadão, tam­bém, vitima de um assalto, levou um tiro no rosto e se encon­tra inter­nado num hos­pi­tal da cap­i­tal; ainda na manhã domingo, chegou-​nos a infor­mação de que uma cri­ança, de ape­nas sete anos, mor­rera, atingida na cabeça durante uma troca de tiros entre mem­bros de facções rivais no Bairro de Fátima.

São fil­hos que nunca mais des­fru­tarão de um abraço do pai, uma esposa que não terá o aconchego do marido; são pai e mãe que, na inver­são da ordem nat­ural da vida, não verão o filho crescer, dar-​lhe netos, cuidar deles na vel­hice; são viti­mas para os quais não se sabe a exten­são das sequelas.

Como num roteiro macabro, escrito com o propósito de des­men­tir sua excelên­cia, todos esses fatos chegaram ao con­hec­i­mento da pat­uleia antes que tivésse­mos tempo de con­cluir a leitura do curto texto de autoel­o­gios, onde fes­teja, segundo as próprias estatís­ti­cas, sub­stan­ciosas reduções nos índices de crim­i­nal­i­dade na cap­i­tal e no inte­rior.

Não tenho ele­men­tos para aquilatar o grau de efe­tiva redução nos indi­cadores de vio­lên­cia, faz tempo – mas, acred­ito, já no atual gov­erno –, que o servi­dores do IML foram “proibidos” de repas­sarem a imprensa os dados das ocor­rên­cias e os meios de comu­ni­cação deixaram de inves­ti­gar os fatos rela­ciona­dos a eles.

Assim, os inter­es­sa­dos em saber os números e a natureza das ocor­rên­cias pas­saram a con­tar, uni­ca­mente, com o cadas­tro ofi­cial do sis­tema de segu­rança.

Sem embar­gos ou ques­tion­a­men­tos um corpo achado crivado de balas, deixa de ser homicí­dio e vira, na estatís­tica, “achado de cadáver”; o cidadão é alve­jado por balas ou facadas e morre um ou dois dias depois no hos­pi­tal, deixa de ser homicí­dio para ser “lesão cor­po­ral seguida de morte” e assim suces­si­va­mente. O que não fal­tam são meios de “dis­farçar” dados.

A falta de inter­esse e/​ou acom­pan­hamento externo facilita que ocor­ram tais situ­ações e que se “venda” uma falsa sen­sação de segurança.

A tragé­dia ocor­rida com a família do Del­e­gado Fed­eral David Aragão era anun­ci­ada desde sem­pre. São raras as residên­cias do Araçagi que ainda não foram assaltadas, arrom­badas ou fur­tadas. Até parece que o bairro virou uma espé­cie de “tra­balho” para os mar­gin­ais que, todos os dias, vão lá fazer o “apu­rado do dia”. Não raros são os ami­gos que con­tam uma história de vio­lên­cia envol­vendo um outro amigo, um par­ente, um con­hecido… descam­bar para latrocínios, estupros, etcetera era algo que acon­te­ceria mais cedo ou mais tarde e que, infe­liz­mente, voltarão a acontecer.

Outro dia – até já escrevi aqui –, ouvi a nar­ra­tiva ater­ror­izante de um amigo-​vítima da vio­lên­cia naquele bairro. Ced­inho, por volta das 6 horas, ele saiu de casa para deixar a esposa na parada de ônibus e voltar para levar a filha no colé­gio. No retorno, quando abria o portão, os ban­di­dos o abor­daram e o ater­rorizaram, pas­sou os piores momen­tos da sua vida temendo pelo que pode­ria lhe acon­te­cer como à sua filha. Segundo ele – para encur­tar a con­versa –, só está vivo para con­tar a história, por causa da filha. Foi isso que lhe deixou claro os ban­di­dos: que só não o matavam para não deixar trauma­ti­zada a cri­ança que, ater­ror­izada, assis­tia a tudo.

Em resumo: após este episó­dio aban­do­nou a casa que lhe con­sumira anos de inves­ti­men­tos na con­strução e foi morar num aparta­mento.

E, são tan­tos os episó­dios de vio­lên­cia, o aban­dono do bairro pelas autori­dades, a falta de infraestru­tura básica, que pas­saram a lhe apel­i­dar de “Araçag­iquistão”, uma refer­ên­cia a vio­lên­cia naque­les países do Ori­ente Médio e out­ros do entorno.

Em que pese as estatís­ti­cas ofi­ci­ais – e que não temos como con­tes­tar – diz­erem que esta­mos indo muito bem, obri­gado!, o que vemos nos bair­ros, sobre­tudo os mais pobres e nas per­ife­rias dos municí­pios da ilha, rev­ela uma outra real­i­dade.

A morte da cri­ança na troca de tiros ou o assalto que cul­mi­nou com a ten­ta­tiva de homicí­dio do empresário na porta de casa são ape­nas os exem­p­los mais gri­tantes.

O Bairro de Fátima sem­pre teve um histórico de vio­lên­cia, mas as pes­soas, até mesmo de fora, con­seguiam cir­cu­lar livre­mente, o mesmo acon­te­cendo no Anil, na Liber­dade, Coroado, Vila Isabel Cafeteira, Vila Litorânea, Div­inéia, Sol e Mar e Luizão.

Eu mesmo can­sei de cir­cu­lar por estes bair­ros com a mesma desen­voltura que cir­culava pelo cen­tro de São Luís, hoje, nem no cen­tro. Não há, nes­tas local­i­dades, uma viela, uma rua, uma quadra ou mesmo o bairro inteiro que não esteja sob o domínio de uma facção crim­i­nosa.

São elas (facções) que deter­mi­nam até se o cidadão deve cir­cu­lar com os vidros dos car­ros fecha­dos ou aber­tos.

Os muros estão cheios de inscrições avisando a pop­u­lação quem é que manda na área e pas­sando instruções aos moradores.

Diante de tais situ­ações, ainda que tenha havido (e não tenho como aferir isso) uma redução nom­i­nal no número de homicí­dios, con­forme fes­te­jado pelo gov­erno, a real­i­dade mostra que aumen­tou a área de domínio das facções crim­i­nosas em toda ilha – com todas suas nefas­tas con­se­quên­cias –, sem que o poder público mostre que, efe­ti­va­mente, tem domínio da situação.

O certo é que teve pouca valia a leitura do texto gov­er­na­men­tal exul­tante com a redução da vio­lên­cia para aque­les que estavam no mesmo dia em que o lia, velando seus mor­tos, torcendo pela resistên­cia de seus feri­dos ou para aque­les que vive o dia a dia sob o domínio do medo.

Abdon Mar­inho é advogado.