AbdonMarinho - CRÔNICA DE UMA MORTE NÃO ANUNCIADA.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sexta-​feira, 19 de Abril de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

CRÔNICA DE UMA MORTE NÃO ANUNCIADA.

CRÔNICA DE UMA MORTE NÃO ANUNCIADA.

FRAN­CISCO Edinei Lima Silva, cidadão bar­ra­cor­dense ou cordino (con­forme o gosto do freguês) com cerca de 40 anos, não imag­i­nava que cam­in­hava para a morte ao sair de casa por volta do meio-​dia para com­prar um carvãoz­inho e dar con­tinuidade ao chur­rasco de domingo.

Envolvido num aci­dente de trân­sito com um moto­ci­clista foi preso e jogado no “cas­tigo” da del­e­ga­cia de polí­cia daquela urbe.

Aqui começa a tragé­dia. O tal cas­tigo da del­e­ga­cia é uma espé­cie de gaiola local­izada nos fun­dos do pré­dio sujeito às intem­péries climáti­cas. Quem fica lá tem que aguen­tar a chuva, o vento, o sol.

Con­siderando que os meses de agosto, setem­bro e out­ubro são os mais quentes do ano em Barra do Corda – e em toda região cen­tral do estado –, com a tem­per­atura chegando, facil­mente, a 40º, não é difí­cil con­cluir que alguém colo­cado num ambi­ente destes com o sol a pino, está, ver­dadeira­mente, sub­metido à infamante prática de tortura.

Segundo, ainda, me infor­mam ami­gos daquela cidade, famil­iares apelaram inúmeras vezes às autori­dades poli­ci­ais para que o reti­rassem daquela situ­ação e estas autori­dades fiz­eram ouvi­dos moucos.

Ape­nas, no dia seguinte, quando o rapaz entrou em con­vul­são, com espumas saindo pela boca, alguém assumiu a respon­s­abil­i­dade de man­dar tirá-​lo da cela por sua conta e risco, mas já era tarde e o rapaz já chegou morto ao hospital.

Disseram-​me que até a mãe do cidadão, fez “ape­los de mãe”, tal qual Maria fez por Jesus na Via Cru­cis, e de nada lhes valeram os ape­los ou lágrimas.

Dissseram-​me, mas custo a acred­i­tar, que ao prisioneiro/​custodiado sequer foi per­mi­tido que bebesse um copo d’água.

Alguém, com um senso qual­quer de humanidade, con­segue imag­i­nar um ser humano preso numa gaiola exposto ao sol a pino, com a tem­per­atura de 40º à som­bra sem dire­ito a uma sede d’água? Isso uma tarde inteira, uma noite inteira, até altas horas manhã do dia seguinte.

Acho que vi cenas assim, mas em filmes como “Conan, O Bár­baro” ou naquela série da fran­quia “Mad Max”, e ainda, naque­les que nar­ram as tor­turas nos primór­dios da civilização.

Causa-​me pavor saber que no Maran­hão, em pleno século 21, ainda ten­hamos que con­viver com cidadãos sofrendo esse tipo de inom­inável tor­tura, preso em gaiola, no sol quente.

Uma vio­lação con­sti­tu­cional gravíssima.

Está lá, logo no iní­cio do capí­tulo que trata dos dire­itos e garan­tias indi­vid­u­ais, no artigo 5º: “III — ninguém será sub­metido a tor­tura nem a trata­mento desumano ou degradante;”.

Alguma autori­dade deste estado é capaz de explicar como chamariam o recol­hi­mento de um cidadão em uma gaiola, exposto a inclemên­cia do sol da tarde, numa tem­per­atura de quarenta graus, sem dire­ito a uma sede d’água?

Se tiverem outro nome que não seja tor­tura, degradação, desumanidade, abuso, inom­inável ver­gonha, por favor, me ensinem.

Ainda pelas infor­mações que me chegaram, este rapaz era um cidadão de bem, tra­bal­hador, não sendo con­hecida qual­quer má con­duta que o desabonasse. Ainda que não fosse. Como podem agentes públi­cos, pagos com nos­sos impos­tos, pegar um ser humano, jogá-​lo numa gaiola nas condições nar­rada acima e sem dire­ito, sequer, de matar a sede?

Como é pos­sível jus­ti­ficar que alguém envolvido num aci­dente de trân­sito, ainda que com todas as agra­vantes, seja sub­metido a este tipo de tor­tura? Ainda que tivesse matado a mãe, chutado grávi­das na praça.

A ninguém, menos, ainda, ao Estado, é dado o dire­ito de torturar.

Evoluí­mos para o Estado da bar­bárie? É isso?

O que ocor­reu em Barra do Corda, um dos maiores municí­pios brasileiros, com cerca de 100 mil habi­tantes, não foi só uma vio­lação a ordem con­sti­tu­cional, aos trata­dos de dire­itos humanos, foi, tam­bém, uma ver­gonha para aque­les assumi­ram o com­pro­misso de não per­mi­tir que coisas deste tipo voltassem a ocorrer.

Se crit­i­cavam as rebe­liões que out­rora ocor­riam no presí­dio de Pedrin­has, onde mar­gin­ais pro­moviam decap­i­tações, aqui temos algo mais grave. Não foram mar­gin­ais que mataram o cidadão cus­to­di­ado, foram os agentes públi­cos. Foi a mão do Estado.

Ninguém – nem mesmo os que não con­hecem qual­quer coisa de dire­ito –, igno­ram a respon­s­abil­i­dade obje­tiva do Estado num caso como o ora narrado.

Entre­tanto, o que me deixa ver­dadeira­mente chocado, é saber que juízes, pro­mo­tores, del­e­ga­dos, defen­sores públi­cos, todos pes­soas da lei, pro­fun­dos con­hece­dores da Con­sti­tu­ição Fed­eral, dos trata­dos de dire­itos humanos, tin­ham e têm con­hec­i­mento deste tipo de cela de tor­tura, que remete aos primór­dios da civ­i­liza­ção, e nunca se mobi­lizaram para extir­par tamanha vergonha.

É triste, é ater­rador que con­sig­amos con­viver com tamanha bar­bari­dade e não nos indignar.

As autori­dades estatais não têm ape­nas o dever de apu­rar com máx­imo rigor – e punir com igual sev­eri­dade os cul­pa­dos –, têm, ainda, o dever moral de, pub­li­ca­mente, se des­cul­parem com os famil­iares e ami­gos da vítima, e com toda a sociedade cor­dina e do Maranhão.

O mín­imo que devem fazer as autori­dades – nem fale­mos na reparação pecu­niária dev­ida –, é, pub­li­ca­mente, se des­cul­parem. Tanto o secretário da pasta – que por muito menos dev­e­ria ser exon­er­ado –, quanto o sen­hor governador.

Farão isso? Não creio.

Os fatos ocor­ri­dos em Barra do Corda, pela intenção mesquinha de tor­tu­rar o preso cus­to­di­ado, chega a ser até mais grave que a desastrada oper­ação poli­cial ocor­rida em Bal­sas, no final de 2015, que viti­mou uma moça, e que, emb­ora os poli­ci­ais ten­ham sido denun­ci­a­dos por homicí­dio doloso, não temos notí­cias, até hoje, de nen­hum pedido de des­cul­pas ofi­cial por parte das autori­dades estatuais.

Não se des­cul­parem por fatos de tamanha gravi­dade, não é ape­nas ina­ceitável, é uma ver­gonha para todos os cidadãos de bem.

O mín­imo que nos devem as autori­dades é se des­cul­parem quando seus agentes come­tem taman­hos desatinos.

Este título: “Crônica de uma morte não anun­ci­ada”, o colo­quei, por não ser comum um cidadão sair de casa ape­nas com intenção de com­prar um carvão, uma carne, uma cerveja, para encer­rar o fim de sem­ana, envolver-​se num aci­dente, encon­trar o Estado e morrer.

Ele não esper­ava mor­rer, que­ria ape­nas ter­mi­nar o domingo com ale­gria e enfrentar mais uma sem­ana de labor. No meio do cam­inho, infe­liz­mente, encon­trou o Estado. Encon­trou a morte. Fim da crônica.

Abdon Mar­inho é advogado.