AbdonMarinho - UMA PRECE POR BERNARDO.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sexta-​feira, 19 de Abril de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

UMA PRECE POR BERNARDO.

UMA PRECE POR BERNARDO.

Já escrevi aqui sobre o assas­si­nato do menino Bernardo Uglione (omito delib­er­ada­mente o sobrenome do pai). Já naquela época, por ocasião da pás­coa, o crime tinha todos os ingre­di­entes para entra na gale­ria das bar­bari­dades con­tra inde­fe­sos. Essas bar­bari­dades que acon­te­cem quase todos os dias e que de tão fre­quentes já inco­modam pouco.

Hoje, com divul­gação de uma série de vídeos mostrando a rotina den­tro da casa em que viveu seus últi­mos anos, uma espé­cie de man­são dos hor­rores, podemos chegar perto de dimen­sionar todas as tor­turas, físi­cas e psi­cológ­i­cas de que foi vítima. Pai e madrasta, pelo que podemos perce­ber dos vídeos, até agora só os de 2013, mostram que os dois destruíram a cri­ança psi­co­logi­ca­mente. Imag­inem para um menino de 10 anos ter o pai dizendo que a mãe que come­tera suicí­dio (?), na ver­dade o aban­donara, o deixara no mato – nas palavras do pai –, e que por isso tinha pena dele. E essa deve ter sido a menor da tor­tura, já feita quando a cri­ança tinha 10 anos. Num outro momento, enquanto dopam a cri­ança e o pai fala numa dosagem de 20 gotas, a madrasta diz para aplicar 60 gotas. Vejam, são 40 gotas de difer­ença entre uma sug­estão e outra.

O crime em si, nada rep­re­senta, em matéria de per­ver­si­dade, ao que pai e madrasta, já vin­ham fazendo com essa cri­ança desde que a mãe mor­reu. É algo assus­ta­dor, apavorante.

Quando a sua mãe mor­reu em 2010, Bernardo tinha de 6 anos, pas­sou a ser cri­ado por dois loucos, sem noção e dom­i­na­dos pela mal­dade. Nos vídeos, que com inco­mum sadismo, gravaram, segundo os meios de comu­ni­cação, para mostrarem pos­te­ri­or­mente o com­por­ta­mento da cri­ança, é a prova cabal de toda a tor­tura psi­cológ­ica a que a mesma fora sub­metida pelos dois. Não se tratava ape­nas de neg­ligên­cia, falta de atenção ou maus-​tratos, trata-​se de desamor, ódio, a imposição à cri­ança de que ela não era querida por nen­hum dos dois, tratando-​a como intrusa e a levando a situ­ações limites.

Os mais sábios que eu, já diziam que a pior sen­sação que pode acon­te­cer com qual­quer ser humano, de qual­quer idade, é a de não ser querido. Você impor essa sen­sação a uma cri­ança, por anos a fios, desde os seis anos de idade é algo absurdo. A situ­ação torna-​se ainda mais per­versa quando essa imposição é feita a um órfão. Quando uma cri­ança perde a mãe na idade em que Bernardo perdeu a sua – digo isso com con­hec­i­mento de causa –, ela passa a se sen­tir deslo­cada em qual­quer lugar, a sua própria casa é como se não fosse mais sua, é como se virasse um intruso no ambi­ente que antes era seu, fica sem uma refer­ên­cia segura. Por isso mesmo, os órfãos pre­cisam de mais atenção, de mais car­inho, de sen­ti­men­tos que os façam con­viver ou tornar menos penosa a imensa perda. Se você tem uma família cuidando da cri­ança, fazendo-​a se sen­tir querida, o sen­ti­mento de aban­dono se torna mais suportável, jamais superável. Acho que psicól­ogo algum con­segue dimen­sionar seu alcance.

No caso de Bernardo, deu-​se jus­ta­mente o con­trário do que era esper­ado. Ele não encon­trou essa for­t­aleza em quem dev­e­ria encon­trar, pior que isso, a refer­ên­cia que podia ter no pai nunca exis­tiu pois esse era, na ver­dade, o seu prin­ci­pal algoz. As tor­turas a que o sub­me­tiam – e vemos isso clara­mente nos vídeos –, eram, acred­ito, para forçá-​lo ao suicí­dio, fazê-​lo deses­perar a tal ponto a só restar o cam­inho de tirar a própria vida. Con­seguiriam se a pressa em livrar da cri­ança não tivesse fal­ado primeiro.

Os depoi­men­tos de ami­gos, inclu­sive do casal que o acol­hia, mostram que ele era amável, car­in­hoso com todos. Muito difer­ente da cri­ança que mostram com um facão na mão ameaçando o pai. Vejam o grau de tor­tura psi­cológ­ica e, talvez, provo­cada por medica­men­tos, a que o estavam sub­me­tendo. Uma reação vio­lenta, prin­ci­pal­mente con­tra um pai, não corre do nada vinda de uma cri­ança. O que faziam com ele antes de começarem a gravar seus hor­ren­dos vídeos domés­ti­cos? A que nível o estavam tor­tu­rando? Quan­tas provo­cações foram feitas antes? Será que alguém duvida que faziam um tra­balho sis­temático para provo­car no menino o grau de deses­pero que ele exibe nos vídeos? Será que duvi­dam que ten­tavam levá-​lo à lou­cura e/​ou ao suicí­dio de forma con­sciente? Claro que não, tanto que quando deram cabo à vida do menino trataram de apa­gar os vídeos dos celulares.

O tipo de com­por­ta­mento que dis­pen­saram a cri­ança não é encon­trado nem entre os ani­mais ditos irra­cionais. Entre eles, vemos, em muitas espé­cies, que órfãos encon­tram pro­teção e apoio do resto da man­ada. Muitas vezes se ver até adoções entre espé­cies distintas.

Histórias de madras­tas más povoam a mente das pes­soas desde sem­pre, desde a infân­cia mais tenra. A história do menino Bernardo não é uma delas. A madrasta pode até ter apli­cado a injeção letal, como já con­fes­sou a cúm­plice, e não sua lou­cura pre­cip­i­tado os acon­tec­i­mento. Entre­tanto, não resta a menor dúvida de que neste enredo tétrico, que nem os mais cria­tivos autores do gênero foram capazes de engen­drar, que o pai é o ator prin­ci­pal. Ele não ape­nas um pai ausente que deix­ava e se omi­tia diante do trata­mento dis­pen­sado pela esposa ao filho órfão, frágil, neces­si­tando dele mais que nunca, ele tinha as par­tic­i­pações mais ati­vas nas tor­turas a que sub­me­tiam o seu próprio filho. Abso­lu­ta­mente indigno de ser chamado de pai. E, ape­sar disso, de toda a mon­tru­osi­dade, o filho o amava. Nos depoi­men­tos dos viz­in­hos percebe-​se que ele só falava das brigas com a madrasta, ocul­tando toda a tor­tura a que o pai o sub­me­tia. Talvez não se desse conta da própria tor­tura que sofria por parte do pai. E que era ele, o pai, o prin­ci­pal respon­sável por todo o seu sofri­mento e desespero.

O martírio que esse menino foi sub­metido desde que ficou órfão é digno da con­ster­nação de qual­quer pes­soa que tenha um mín­imo de sen­ti­mento. Merece, que em seu nome, façamos uma prece.

Abdon Mar­inho é advogado.