AbdonMarinho - Violência
Bem Vindo a Pagina de Abdon Marinho, Ideias e Opiniões, Segunda-feira, 29 de Abril de 2024



A palavra é o instrumento irresistível da conquista da liberdade.

Escrito por Abdon Marinho

RECORDAR É VIVER:
SOBRE O CUMPRIMENTO ANTECIPADO DA PENA.
O BRASIL experimenta dias de radicalismos por conta da decisão relacionada ao Habeas Corpus do ex-presidente Lula, condenado em primeira e segunda instância.
Naquela oportunidade escrevi o texto que segue abaixo:
A BARBÁRIE, A IMPUNIDADE E O SUPREMO*.
Por Abdon Marinho.
– Agora lascou.
Com estas palavras, me alcança um amigo, na madrugada seguinte à decisão do Supremo Tribunal Federal - STF, que deliberou, em um caso concreto, sobre a possibilidade do condenado em primeira e segunda instâncias da justiça, iniciar o cumprimento da pena, ainda que com recursos pendentes nos tribunais superiores.
Na tarde do mesmo dia, enquanto aguardava o julgamento de um processo no Tribunal Regional Eleitoral - TRE/MA, foi a vez de um jovem colega indagar-me e cobrar que opinasse sobre o tema.
A decisão da Corte Suprema talvez tenha sido o ápice uma semana excepcionalmente perturbadora para mim e que me faz pensar sobre o quê aguarda a humanidade.
Duas notícias vindas do interior do Maranhão – que ainda custo em acreditar – remete-nos a um mundo de barbárie que pensava não mais existir ou que estivesse muito longe da nossa realidade.
A primeira, de São Bernardo, município de menos de 30 mil habitantes, nos dando conta que “populares" invadiram e sequestraram presos acusados do homicídio de um empresário, torturaram-nos e os mataram. Os blogues do estado divulgaram as imagens do fato – que não tive coragem de assistir.
A segunda, vinda de Colinas, cidade com pouco mais de 40 mil habitantes, narra que ladrões “estouraram” uma agência bancária, uma refém foi vítima de “bala perdida” ou executada. Quando os bandidos fugiram do local deixando a vítima nas imediações de onde ocorrera o delito "populares" correram para o banco para pegar e se apropriar dos maços de dinheiro deixados pelos bandidos. Mais que isso, algumas fontes narram que festejaram a “sorte” que tiveram com a empreitada.
Os dois episódios nada têm, em princípio, com a decisão tomada pelo STF, mas revela aspectos interessantes da sociedade em que vivemos. No caso de São Bernardo, populares, supostamente, incrédulos com a ação do Estado em punir malfeitores a ponto de torturarem e executarem aquele(s) que cometeram um crime hediondo. Fazendo isso publicamente, à luz do dia, alguns exibindo o rosto às claras e sem receio.
Já no episódio de Colinas, tais populares não demonstraram tanto pesar pelo perecimento de uma vítima inocente da ação dos facínoras, pelo contrário, acharam oportuno tirar uma vantagem pessoal de uma ação odienta, indiferentes ao sofrimento da vítima e de sua família se locupletaram, também eles, do roubo.
Se chegarem aos autores dos fatos de São Bernardo, estes, confrontados com a Justiça decerto que dirão que agiram em nome da justiça, contra a impunidade, etc.
Já os de Colinas dirão que foram capazes de roubar o banco ignorando a vítima por que viram “outros” fazendo o mesmo.
Em ambos os episódios a questão de fundo é a impunidade. Uns dizendo que agem contra a impunidade e outros na certeza que aquilo que fizeram sairá impune.
Aqui, os três episódios confluem: os bárbaros acontecimentos do interior da Maranhão e a decisão do Supremo. Todos têm por móvel a impunidade.
Não é atoa que os veículos de comunicação trataram a decisão do STF como histórica no combate a impunidade, colocando na mesma matéria tanto as decisões dos ministros quanto os casos símbolos de impunidade no país.
O caso de Pimenta Neves que tendo matado a namorada, sendo ré confesso, experimentou, tardiamente poucos dias na cadeia.
O caso do ex-senador Luís Estevão que tendo sido condenado pelo roubo de milhões de uma obra em São Paulo permanece solto de recurso em recurso.
O caso do juiz Nicolau dos Santos Neto; e tantos outros casos emblemáticos que fazem o cidadão comum crer que a Justiça trata de forma diferente uns e outros.
Reputo o combate à impunidade uma urgência nacional tão importante quanto o combate ao mosquito Aedes Aegypti, mosquito responsável pelas preocupações de quase todos os brasileiros. Aliás, a infestação de mosquitos se deve ao fato de muitos dos responsáveis pelos recursos públicos estar soltos.
A decisão do STF vai além de “preocupante" conforme manifestou-se, timidamente, a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, ela avança sobre umas das garantias constitucionais mais caras inseridas na Constituição do país.
Está lá no artigo 5º, inciso LVII: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Estou convicto que a decisão, por maioria, do Supremo vem ao encontro do anseio da larga maioria do povo brasileiro que clama pelo fim da impunidade, sobretudo, daqueles que sempre se mostraram inatingíveis pela lei que deveria ser para todos e, longe, de mim, por outro lado defender a impunidade.
Apesar disso, entendo que há algumas questões que merecem ser respondidas:
A primeira delas é que ao Supremo não cabe reescrever a Constituição. Por mais que lhe caiba fazer a interpretação da mesma, não lhe têm os ministros, o poder de dizer que aquilo que está escrito pode ser interpelado de outra forma.
A segunda questão é que, embora a intenção da maioria do Supremo seja boa, o combate à impunidade, como disse é uma urgência, tenho dúvidas se não estão cometendo um mal maior.
Não há formas mais eficazes de se combater a impunidade? Não existem mecanismos que façam a Justiça funcionar com mais eficiência e rapidez?
A sociedade não pode ser constrangida à escolha de Sofia.
Em nome do fim da impunidade, abrir mão do principio constitucional da presunção da inocência.
O ministro Celso de Mello, decano do STF, e um dos votos-vencidos na matéria que dotou país de uma nova orientação, em entrevista em rede nacional, trouxe uma questão que considero gravíssima. Ele, que compõe aquele colegiado desde 1989, asseverou que 25% (vinte e cinco por cento) das matérias criminais que chegam aquela Corte, através de recursos extraordinários são reformadas.
O número é espantoso. Poucos casos chegam ao Supremo, se destes 25% (vinte e cinco por cento) são reformados, quantos não o são no Superior Tribunal de Justiça - STJ, onde os recursos chegam com mais freqüência e abundância?
Em vigor a nova orientação, quantos inocentados posteriormente, não terão amargado o cárcere? Quem pagará por isso? Criarão uma tabela dizendo quanto vale cada dia em o cidadão inocente passou preso?
Claro que precisamos averiguar se esse número de decisões reformadas não é um dos subprodutos da impunidade. Mas, ainda que seja menos, o encarceramento de um inocente, por um dia que seja, não pode ser trocada por dez, cem ou mil culpados soltos.
A grande questão é esta: se vale a pena encarcerar inocentes em nome do combate à impunidade.
Na minha opinião nada é mais importante que a liberdade de um inocente, ainda que para garantimos essa liberdade tenhamos que tolerar alguns culpados soltos.
No dia seguinte após a decisão do Supremo, tentando encontrar algo de positivo na mesma, dizia a um colega: – agora, os julgadores de primeira e segunda instâncias, diante da tamanha responsabilidade que é mandar um inocente para cadeia, tomarão muito mais cuidado na hora de julgar, verão se de fato o crime foi cometido, de forma e por quem.
Conhecedor de mais coisas que eu, ele me desencorajou: – para os inocentes, as coisas ficarão bem mais difíceis.
Será que o que nos espera é mesmo a barbarie?
Abdon Marinho é advogado.
* Texto publicado em 2016, por ocasião da decisão do STF sobre cumprimento da pena após condenação em segunda instância.