AbdonMarinho - PRIVILÉGIOS E LITURGIAS.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Terça-​feira, 16 de Abril de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

PRIV­ILÉ­GIOS E LITURGIAS.

PRIV­ILÉ­GIOS E LITURGIAS.

Tinha poucos anos no ofí­cio de advo­gado quando fui con­tratado para asses­so­rar uma admin­is­tração munic­i­pal um pouco dis­tante do inte­rior. Um dia fui alcançado por um impor­tante sec­re­tario que recla­mava minha pre­sença com urgên­cia na local­i­dade. Dev­e­ria me diri­gir ao aero­porto logo cedo que avião bimo­tor alu­gado estaria a minha espera. Já estran­hei a neces­si­dade de ir de avião, o municí­pio emb­ora dis­tante, se alcançava em, no máx­imo, 4 horas. Mas segui a ori­en­tação e as seis da manhã já estava dis­farçando meu medo de voar e embar­cando na aeronave.

A sur­presa maior me deparei quando cheguei. No aero­porto, esperava-​me um séquito, for­mado por alguns asses­sores e diver­sas out­ras pes­soas em moto­ci­cle­tas, guarda-​municipal, etc. Peguei o carro e pus-​me a seguir o cortejo com uma infinidade de bate­dores à frente.

Como ardoroso fã de cin­ema, via tudo como em um filme rodado numa das infini­tas ditaduras africanas: aque­las dezenas de bate­dores abrindo cam­inho por ruas empoeiradas com suas casas de barro e cober­tas de pal­has. Era a própria África. E eu, no papel do tiranete de plan­tão. Devo acres­cen­tar que as motos dos bate­dores iam buz­i­nando, abrindo cam­inho para mim e para os out­ros car­ros do cortejo. Era uma cena rocambolesca.

Chegando ao meu des­tino, uma casa de campo um pouco reti­rada do cen­tro da cidade, indaguei à impor­tante autori­dade o que sig­nifi­cava aquilo tudo, qual a razão de tanto aparato. Respondeu-​me mais ou menos assim: — Dr. Abdon, trata-​se de uma dis­puta com a Câmara Munic­i­pal, temos que mostrar que o sen­hor é uma impor­tante autori­dade das leis para os vereadores e para a comu­nidade e que veio aqui para resolver o assunto. Fiquei sem palavras.

Lembrava-​me deste bizarro episó­dio da minha vida, ao ver a reper­cussão de uma nota sobre o gov­er­nador do estado onde o mesmo era crit­i­cado por andar ao lado do motorista no veículo ofi­cial e não no banco de trás. Segundo a crítica, sua excelên­cia, estaria desre­spei­tando a litur­gia do cargo.

Como vemos, em todas as sociedades atrasadas e com o ranço dos priv­ilé­gios e litur­gias, o debate acon­tece por esse viés e não por um motivo sério.

A ninguém socorre pen­sar que a incon­veniên­cia do gov­er­nador se deslo­car ao lado do motorista ofi­cial coloca em risco sua segu­rança pes­soal o que é ruim para a sociedade. Quais­quer man­ual de segu­rança, pelo menos os me lem­bro, dos filme que assisti, recomen­dam que a autori­dade deva sentar-​se atrás em posição diag­o­nal à do con­du­tor do veículo, sentando-​se o segu­rança pes­soal ao lado do motorista. Infor­mam os mes­mos man­u­ais, que em caso de aten­tado, o alvo é primeiro o motorista, o que coloca em risco a segu­rança que quem vem atrás dele ou do lado. Estando a autori­dade em posição diag­o­nal, corre menos risco.

A mesma coisa acon­tece em relação ao gov­er­nador não morar na ala res­i­den­cial do palá­cio do gov­erno. Neste caso cam­inho pelo mesmo sen­tido, se existe uma ala res­i­den­cial disponível e se já parte da rotina sua segu­rança, não faz sen­tido que se desloque poli­ci­ais para efe­t­uar a segu­rança do gov­er­nador num edifí­cio ou casa. Sem con­tar que, se há um descon­forto para os agentes de segu­rança, há o incô­modo para a viz­in­hança. Lem­bro que no auge dos protestos con­tra os gov­er­nos no ano de 2013, a pop­u­lação car­i­oca sitiou o gov­er­nador Sér­gio Cabral no edifí­cio em que morava. Dia e noite se ouviam palavras de ordem. Tudo bem, é bem pos­sível que mere­cesse ficar siti­ado e a ouvir incon­táveis impropérios, mas os seus viz­in­hos não. Não tin­ham nada com a \«cor da chita\». Eram cidadãos comuns, pagadores de impos­tos, como os que protestavam.

Algo semel­hante se deu, não faz muito tempo, com atos de protestos con­tra o prefeito da cap­i­tal pro­movi­dos por pro­fes­sores da rede munic­i­pal de ensino. O protesto era con­tra o prefeito, a poluição sonora o era com­par­til­hada por todos seus viz­in­hos, muitos dos quais, nem nele deposi­taram o voto.

A fora essas ressal­vas quando à segu­rança do gov­er­nador – uma vez que na sua posição con­trari­ará muitos inter­esses – ou pos­síveis incô­mo­dos aos viz­in­hos, entendo que já passa da hora de se pôr fim a essa cul­tura de priv­ilé­gios e liturgias.

Tais priv­ilé­gios e litur­gias são os exem­p­los mais claros do atraso africano em que foi inserido o Maran­hão nas últi­mas décadas.

Aqui o poder é para ser osten­tado, serve para gerar priv­ilé­gios a meia dúzia de apanigua­dos, que usufruem de todos benesses do Estado em detri­mento de mérito; serve para enricar umas pou­cas famílias que usam o poder como parte do seu patrimônio pessoal.

O atraso é tamanho que o povo acha nor­mal que os gov­er­nantes se sir­vam do patrimônio público como se o mesmo fosse exten­são do seu próprio patrimônio, que fiquem ricos quando ocu­pem car­gos públi­cos, emb­ora todas saibam que o salário não é essas coisas, que riqueza vem mesmo do alcance, da propina.

Olhando a minha vida em ret­ro­spec­tiva me recordo das inúmeras vezes que ouvi um ou outro eleitor dizer que não votava em ninguém mais pobre que ele; que o prefeito ou dep­utado que não roubavam eram \«bestas\», que nada tinha demais se apro­pri­arem dos recur­sos públi­cos deste que aten­dessem suas deman­das por um emprego para um par­ente, lhe avi­asse uma receita médica, lhe desse uma par de sandálias ou lhe pagasse uma dose cachaça.

Isso pre­cisa mudar.

O gov­er­nador mere­cerá aplau­sos caso con­siga romper com esse tipo de cul­tura. Romper com esses priv­ilé­gios e litur­gias que só servem para legit­i­mar o assalto aos cofres públi­cos. Pre­cisamos romper com esse atraso que só aprox­ima o estado das nações mais atrasadas do mundo.

O Maran­hão pre­cisa é se aprox­i­mar das democ­ra­cias mais avançadas, onde as autori­dades não são tidas por deuses, que dirigem seus próprios veícu­los, pagam suas próprias con­tas, levam uma vida nor­mal e muitos até vão para o tra­balho de ônibus, metrô ou bicicleta.

Ainda esta­mos longe de alcançar o nível de segu­rança que sim­bolize esse desen­volvi­mento, mas deve­mos bus­car é isso e não con­struir uma cul­tura de priv­ilé­gios que nos faça rivalizar com os países mais atrasa­dos tais como as ditaduras africanas.

Ainda no tema, outro dia contaram-​em o seguinte fato:

O Papa Fran­cisco pre­cisou vir ao Brasil as pres­sas, encon­tro urgente e sig­iloso com um arce­bispo que estava em Apare­cida impos­si­bil­i­tado de se locomover.

As autori­dades ecle­siás­ti­cas man­daram um motorista apanhá-​lo, um negrão de quase dois met­ros de altura.

O papa sentou-​se a seu lado e disse: – pise fundo pois tenho que chegar lá e voltar rápido.

O motorista, todo acan­hado foi logo respon­dendo: – Olhe seu papa, eu não posso cor­rer muito, pois os guardas tem ordens de mul­tar todo mundo.

O papa já impa­ciente man­dou parar e tomou a direção e, apres­sado, pisou fundo.

Lá na frente, só ouviu o apito do guarda man­dando parar.

Encos­tou e quando o guarda chegou perto levou um susto. Ime­di­ata­mente ligou para o chefe: – Coman­dante, temos um prob­lema aqui.

O chefe já foi logo dizendo: – Já sei, alguma autori­dade, metida a engraçad­inho cor­rendo demais, algum vereador, dep­utado? Indagou.

O guarda respon­deu: – mais que isso.

O chefe: – senador, governador?

O guarda: – mais que isso chefe.

O chefe: – Algum diplo­mata, o Obama, a presidente?

O guarda encer­rou logo o assunto: – olhe chefe, não sei quem é a autori­dade, mas o motorista do “homi\» é o papa.

Com os exces­sos con­ti­dos na piada, nada há demais nas autori­dades levarem uma vida comum, sem priv­ilé­gios ou osten­tações e respon­derem por seus atos, como qual­quer mortal.

Abdon Mar­inho é advogado.